Friday, January 05, 2007

Utopia no sertão


Pedro J. Bondaczuk

“A guerra do fim do mundo”, de Mário Vargas Llosa, foi o segundo melhor livro que li sobre a Guerra de Canudos, episódio que ocorreu, em pleno sertão baiano, entre 1896 e 1897, e que é hoje, sem favor nenhum, o fato da história brasileira que conta com a mais vasta bibliografia. Cataloguei pelo menos 700 obras a respeito, de todos os gêneros e tendências. Ainda assim, não foi possível chegar a nenhuma conclusão, nem sobre a personalidade de Antônio Conselheiro e nem a respeito das motivações, de parte a parte, que as levaram à sangrenta confrontação, com resultados trágicos para os dois lados.
Para a maioria dos autores, o beato cearense, que perambulou pelas caatingas nordestinas, pregando o amor e a moral cristãs – e construindo e conservando igrejas e cemitérios – não passava de um fanático irresponsável, que se valia da ignorância da explorada e miserável população local, para fazer proselitismo. Alguns, no entanto, como, por exemplo, Afonso Arinos, viram no teimoso pregador um idealista, que queria, sobretudo, melhorar as condições de vida daquela gente sofrida e sem esperanças. Esses ressaltaram que o estranho e carismático personagem não se tratava de um ignorante embusteiro, mas de um homem de relativa cultura para a época, com sólidos conhecimentos de latim e de português, entre outras disciplinas, e que chegou a advogar e até a lecionar para filhos de fazendeiros ricos.
O geofísico Ruy Bruno Bacelar de Oliveira, atualmente um dos maiores especialistas do País no assunto – autor dos livros “Meu encontro com Canudos” e “De caldeirão a pau de colher: a guerra dos caceteiros” – foi mais longe. Viu, nessa rebelião dos “humilhados e ofendidos” do sertão, comandada por Antônio Vicente Mendes Maciel, uma tentativa de implantar uma sociedade utópica em pleno interior baiano. Em entrevista que concedeu em maio de 1991 à revista “Raízes da Bahia”, afirmou: “Conselheiro estabeleceu uma comunidade de natureza socialista, baseada nos anseios das massas camponesas, mas influenciado, também, pelas idéias do cristianismo primitivo e, possivelmente, pela ‘utopia’ de Thomas Morus. Então, era um sistema socialista, em plena caatinga nordestina”.
O mais completo livro que li sobre o episódio, evidentemente, foi “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Mas não foi o primeiro e nem o último. E sequer o mais agradável de ler, dada a complexidade do estilo do autor e o detalhamento que ele faz da questão, que se constitui num verdadeiro tratado antropológico, sociológico, político, militar etc. É um livro para ser estudado, lido fazendo-se anotações, e não de um único sopro, como se faz, por exemplo, com os de contos, novelas ou romances fluentes. Apesar de todo o seu rigor, porém, o engenheiro e escritor fluminense toma partido: o das supostas “forças da ordem e da legalidade”, evidentemente. Não consegue manter a eqüidistância exigida, por exemplo, do historiador (o que ele não era).
Mas o mais agradável livro que li sobre Canudos (e li mais de 30), foi “A guerra do fim do mundo”, do peruano Jorge Mário Pedro Vargas Llosa. Seu lançamento, no Brasil, ocorreu em 1981, pela Livraria Francisco Alves Editora S.A. Em 553 páginas, sem fugir em momento algum do rigor dos fatos, o escritor mistura ficção e realidade, para descrever a que foi, provavelmente, a mais estranha e mal-compreendida epopéia ocorrida mo Novo Mundo. Classifica esse episódio – ele sim sem tomar partido – de “o grande mal-entendido nacional”, que é, ao que tudo indica, o que de fato ocorreu.
Tinha que ser alguém de fora do Brasil para enxergar, com o distanciamento exigido do historiador (embora sem sê-lo), o que aconteceu naqueles ermos sertões baianos! Vargas Llosa coloca, lado a lado, com precisão e maestria, personagens reais, históricos – como os irmãos Vilanova, os jagunços Pedrão, Pajeú e João Grande, entre outros – e fictícios, criados por sua fértil imaginação, mas verossímeis, com fisionomias, costumes, falas e comportamentos dos sertanejos de então. Entre estes, os principais são Maria Quadrado, o Leão de Natuba, o frenólogo Galileu Gall e o jornalista míope, da boca de quem o leitor toma conhecimento do massacre de Canudos.
A linguagem é ágil, viva, dinâmica, mas coloquial. O enredo flui, espontâneo, com naturalidade, e apesar da extensão do romance, o leitor não consegue, por mais que queira, interromper a leitura – tamanha é a capacidade do autor de prender as pessoas – que faz, num só sopro, até a última página. É, sem favor algum, obra-prima da rica literatura latino-americana. E escrita por quem tem currículo, cancha, pedigree. Afinal, Vargas Llosa conta com extensa, sólida e premiadíssima obra, autor que é de best-sellers como “Conversa na catedral”, “Pantaleão e as visitadoras”, “História de Mayta”, “O falador”, “A casa verde”, e mais uns vinte outros sucessos editoriais, nos gêneros romance, conto, novela, ensaio e peça teatral.
“A guerra do fim do mundo” torna-se, dessa forma, leitura quase que obrigatória neste ano em que se completam 110 anos desse episódio que, reitero, ainda hoje não é bem-compreendido e que ainda não foi “digerido” por nossa intelectualidade. Seria o caso de alguma editora de visão providenciar seu relançamento. A edição original brasileira conta com a tradução de Remy Gorga Filho e tem a seguinte dedicatória do autor: “A Euclides da Cunha, no outro mundo; e, neste mundo, a Nélida Piñon”. Original, sem dúvida, como o próprio romance histórico deste que é um dos mais completos escritores contemporâneos em todo o mundo.

1 comment:

Unknown said...

Boa noite. Meu nome é Ana Carolina e sou estudante de História. Gostei muito do seu texto, que trata do assunto que pretendo abordar em meu trabalho de conclusão de curso daqui a alguns meses.Acho extremamente interessante o florescimento de tal civilização e seus ideários de igualdade e também de como foi impiedosamente destruída. Obrigada pela leitura!