Tuesday, January 30, 2007

Tempo e memória


Pedro J. Bondaczuk


As coleções dos jornais, além de se constituírem num precioso material para os historiadores – afinal, o jornalismo é o relato da história humana no exato momento em que ela acontece – contêm um acervo literário como raras bibliotecas possuem. Os grandes escritores brasileiros, em sua maioria, freqüentaram algum dia as redações. Podem ser citados, entre outros, Machado de Assis, Artur Azevedo, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e Guilherme de Almeida. Ou Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara de Rezende, Fernando Sabino, Murilo Mendes, Nelson Rodrigues, Rachel de Queiroz, Inácio Loyola Brandão, Luís Martins (que assinava, apenas, "L. M. as suas colunas no jornal "O Estado de São Paulo"), Sérgio Milliet, Paulo Bonfim, Luiz Fernando Veríssimo, Carlos Heitor Cony... E a relação poderia ser desfiada por aí afora. Estes escritores fizeram, generosamente, a ponte entre o jornalismo e a literatura, através da crônica.

No entanto, muitos trabalhos extraordinários desses intelectuais jamais foram publicados em livros. Ficaram (alguns ainda ficam) restritos às coleções de jornais encadernadas (que hoje são microfilmadas) ou em hemerotecas --- álbuns de recortes --- dos leitores mais práticos e perspicazes. Afinal, por um preço irrisório, esses colecionadores compulsivos têm em mãos um acervo que, embora, paradoxalmente, tenha sido acessível a uma quantidade enorme de pessoas, pouquíssimas tiveram o bom senso de recortar e guardar.

Textos magistrais, depois de lidos --- muitos nem o foram pela maioria --- acabaram servindo para embrulhar verduras, carnes, peixes, ou utilizados para forrar o piso de automóveis, quando não tiveram fins até mais prosaicos e menos nobres. Este é o destino dos jornais velhos. Nunca é demais repetir a constatação de Jorge Luiz Borges: "O jornalista escreve para o esquecimento, quando seu sonho seria escrever para a memória e o tempo". Alguns excelentes redatores, que quando na ativa polarizaram diariamente a atenção de ávidos e fiéis leitores, jamais publicaram livros. Tão logo se afastaram da profissão, foram esquecidos. Ou quando lançaram seus volumes de crônicas, passaram despercebidos e hoje são raramente lembrados.

É o caso de Paulo Barreto. Citado pelo nome de batismo, pouquíssimos cidadãos --- talvez os mais eruditos ou idosos --- são capazes de identificar quem ele foi. Pelo pseudônimo com que atuou na imprensa carioca, contudo, é melhor identificado, embora raros possam dizer que leram alguns dos seus textos. Referimo-nos a João do Rio, que no início deste século gozou de prestígio semelhante --- guardadas as devidas proporções --- que tem o nosso cronista mor, Rubem Braga.

Pouca gente conhecia melhor sua cidade, principalmente no que diz respeito ao comportamento de seus habitantes, do que ele. Paulo Barreto começou a trabalhar em jornais ainda adolescente, aos 20 anos. Ao morrer, em 1921, aos 40 anos, era tido como um dos maiores nomes da imprensa brasileira. Hoje, quem o conhece de fato? Quantos já leram, por exemplo, "Dentro da Noite", "Vida Vertiginosa" e "Alma Encantadora das Ruas", seus principais livros?

O mesmo ocorre em relação a Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, que na década de 60, até sua morte aos 44 anos, encantava os leitores do jornal "Última Hora", da revista "O Cruzeiro" e de tantos outros órgãos, com suas crônicas bem-humoradas e brincalhonas. Quem se lembra do Gari? Ou de Arapuã? Ou mesmo de colunistas mais recentes, que não estão mais na ativa e que deixaram tanto de si nas páginas dos diários onde trabalharam? A imprensa campineira sempre contou com excelentes cronistas (não confundir com articulistas), tanto nos seus jornais diários, quanto nos periódicos, como a nossa querida Folha do Taquaral.

Alguns, como o venerado mestre e confrade Isolino Siqueira, como Rubem Costa, como João Ballesteros Netto, como Mário Pires ou como Pereira Esmeriz, para citar os que vêm de pronto à memória, há muito estão afastados das atividades jornalísticas, privando-nos, por conseqüência, de suas deliciosas crônicas, repletas de encanto, de lirismo e de humanidade.

Outros, como os saudosos Maurício de Moraes, Jolumá Brito, Benedito Sampaio, Francelino Piauí, Paranhos de Siqueira, Amaral Lapa, etc., nos deixaram. Deles, somente, restam saudades nos corações dos que tiveram o privilégio de conviver com figuras tão carismáticas, talentosas e ímpares. Além, é claro, de textos que deveriam ser imortais, mas que estão guardados, apenas, nos arquivos empoeirados de jornais e em hemerotecas de colecionadores (como eu), de cujo acesso a maioria da atual geração é privada. Até quando?

Outros, ainda, como Célia Siqueira Farjalatt, Cecílio Elias Netto, Zeza Amaral e Moacyr Castro (para mencionar apenas alguns), continuam (felizmente) nos brindando com a sua inteligente e sensível visão do mundo. Mantêm colunas, de periodicidade variável, em jornais diários, que poucos leitores têm o interesse e a curiosidade de recortar e guardar. Não sabem o que estão perdendo! Há os que, como Arita Damasceno Pettená, publicam seus belos textos eventualmente, apenas de quando em quando (o que é uma pena, pois nesse caso se trata de excelente e talentosa cronista!). Há, finalmente, quem, como Conceição Arruda Toledo, nos brinde com crônicas maravilhosas, em jornais periódicos, na chamada "imprensa nanica" ou "alternativa". Menos mau!

Todas essas crônicas, todavia, não podem se perder. São preciosas demais! Precisam ser preservadas, não importa como e nem por quem, pelo inegável valor histórico, literário e humanístico que contêm. E, se possível, têm que ser utilizadas como material de leitura de classe, nas escolas da cidade, nestes tempos em que são cada vez mais raros aqueles que sabem escrever com elegância, correção e simplicidade. Pouquíssimas são!! Que tremendo cabedal de arte e cultura, portanto, é subutilizado, por falta de imaginação, de iniciativa, de criatividade e, principalmente, por ausência de memória!

(Crônica publicada na página 2, Opinião, do Correio Popular, em 9 de janeiro de 1993).

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