Thursday, January 18, 2007

Érico, o humanista


Pedro J. Bondaczuk


Às vésperas do 20º aniversário da Rede Globo, transcorrido em 1985, a obra de um dos mais refinados, criativos e consagrados escritores brasileiros (entre os meus preferidos, tanto pelo seu estilo e temas tratados, notadamente a história romanceada do Rio Grande do Sul, quanto por ser gaúcho, e portanto meu conterrâneo), Érico Veríssimo, veio à baila (com toda a justiça) nos meios de comunicação, em especial no mais popular deles, que é a televisão. Quem ganhou com isso, além da cultura nacional, foi, evidentemente, o público, que pôde conhecer, dessa forma, vislumbres da capacidade de um mito das nossas letras.

Um dos seus mais conhecidos e apreciados romances – a trilogia, “O Tempo e o Vento” – abordando as peripécias, venturas e desventuras das famílias Terra e Cambará (que findaram por se unir pelos laços do matrimônio e produziram notável descendência) foi o escolhido como a “piéce de resistence” dessas comemorações. E nem seria necessário informar, para os mais jovens que ainda não haviam nascido na época, que se tratou de absoluto sucesso. Pudera! O enredo é ótimo e os atores que lhe deram vida compunham o que havia de melhor na TV e no teatro. Formavam o que se pode classificar de “primeiro time” da dramaturgia brasileira, uma das mais ricas e talentosas do Planeta.

Mas não é da minissérie em questão que queremos tratar. E nem de um trabalho posterior, levado ao ar pela mesma Globo, “Incidente em Antares”, anos depois. Estes livros foram mencionados somente como “gancho” para trazer à baila a personalidade desse mestre da Literatura nacional. Aqueles que conviveram com o escritor de estilo limpo e definido e que tinha uma forma de escrever sempre afirmativa, que prende e cativa o leitor, são unânimes em destacar, mais do que a obra, magnífica, o seu autor.

Érico Veríssimo, natural de Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, era um homem de temperamento pacífico, que tinha aversão, e mais do que isso, horror à violência. No entanto, retratou como ninguém, com crueza e verdade, esses conflitos e dramas em seus livros. Sempre defendeu o engajamento do escritor numa causa maior do que a de propaganda de qualquer forma de ideologia ou de ação política: a defesa da vida e da dignidade do homem.

A esse propósito enfatizou, num artigo publicado pela “Folha da Manhã” em 13 de agosto de 1939: “Os maiores romancistas da humanidade foram grandes apreciadores da vida. É um erro pensar que o romancista inventa histórias para fugir à vida. Pelo contrário. O que o leva a escrever romances é o desejo tumultuoso de multiplicá-la!”.

Embora defendendo o engajamento do escritor, Érico faz, nesse mesmo artigo, uma ressalva: “Penso que o romancista não deve ter partido político. A vida é múltipla e, no fim das contas, onde está a verdade? Acho que a preocupação moral do escritor deve ter como objetivo principal a causa humana”. Ou seja, sem sectarismo e nem partidarismo, é dever do escritor denunciar, a seu modo, as arbitrariedades dos poderosos e exigir justiça e liberdade para todos.

Três episódios ilustram esse lado combativo do autor de “Olhai os lírios do campo”. Em 1943, quando Getúlio Vargas estava de namoro com o nazismo de Adolf Hitler e com o fascismo de Benito Mussolini, Érico fundou, em Porto Alegre, a Sociedade Anti-Franquista, a primeira do gênero no País. Anos mais tarde, em 1970, em plena ditadura militar, quando da imposição da censura prévia na imprensa e nos meios artísticos e intelectuais, levantou-se, novamente, ao lado de Jorge Amado, contra a arbitrariedade. Na oportunidade, tornou pública sua repulsa, afirmando: “Faz-me sentir envergonhado, como brasileiro, de equiparar-me à época em que Hitler e Goebbels amordaçaram a inteligência e o livre debate na Alemanha nazista”.

Pouco antes, Érico havia recusado um diploma de “Doutor Honoris Causa”, que lhe havia sido outorgado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Justificando seu gesto, observou: “Não posso aceitar honrarias de uma universidade que cassa professores de valor e persegue estudantes por predileções políticas divergentes do padrão oficial vigente”.

Esse mesmo homem duro e combativo quando se tratava de denunciar arbitrariedades e atitudes de força, era de uma ternura ímpar, incomparável no relacionamento com a família e com os amigos. Érico, por exemplo, mantinha conta em uma farmácia de Porto Alegre, onde a despesa maior não era a sua, mas a feita por funcionários da Editora Globo, que lhe vinham pedir dinheiro emprestado para comprar remédios. Ao invés de lhes dar os empréstimos, autorizava-os a comprar os medicamentos que necessitassem em seu nome. Na maioria das vezes, encontrava grandes dificuldades para saldar a conta. Mas nunca cobrou ninguém que se valeu desse recurso e se “esqueceu” de pagar.

Em determinadas ocasiões, Érico chegou a refazer secretamente traduções mal feitas na editora, sem que os respectivos tradutores sequer soubessem, para que o trabalho final fosse satisfatório e eles não perdessem o valioso “bico”. Mais do que um escritor de incomparável talento, portanto, o autor de “O tempo e o vento” foi uma figura humana extraordinária, que amava seus parentes, seus amigos, seus livros, a música clássica, o trabalho e, sobretudo, as pessoas que o cercavam. E ele justificou essa postura, em um trecho do artigo que citamos: “Eu me obstino em acreditar no homem e na dignificação da vida. Talvez se possa dar a isso o nome de Fé. É uma idéia que me consola...”. E a nós também, querido conterrâneo.

(Crônica publicada na página 23, Ciranda, do Correio Popular, em 1º de novembro de 1984).

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