Thursday, April 12, 2007

Dia de glória


Pedro J. Bondaczuk

O fato aconteceu na sexta-feira, 6 de junho de 1997, dia seguinte à decisão do Campeonato Paulista no Morumbi, em que o Corínthians, com um empate de 1 a 1 com o São Paulo, gol do ex-lateral esquerdo sampaulino André Luiz, se tornou o campeão da temporada. Mas poderia acontecer em qualquer época ou lugar, nas finais das várias competições de futebol pelo País afora.

Um homem, que chamaremos de João – o nome verdadeiro pouco importa –, aparentando, pela roupa que vestia (na verdade um uniforme), uma condição social bastante humilde, se aproxima de outro, impecavelmente trajado, com terno de lã e gravata de seda importados (provavelmente italianos), sapatos feitos a mão, também na Itália, identificado, simplesmente, como Klaus, com o qual se supunha tinha alguma intimidade. Não muita, é verdade.

No olhar do primeiro, um brilho de vitória e de superioridade. Agia como se tivesse obtido uma fortuna na loteria ou coisa assim. Ou como se tivesse passado em algum concurso público, conquistando uma vaga que lhe renderia além de salário milionário e toda a mordomia imaginável, um poder ilimitado sobre um batalhão de subalternos. Ou como se fosse um diplomata que houvesse sido agraciado com alguma cobiçada embaixada, pela qual tivesse lutado a vida toda.

João esmerava-se em louvar as virtudes do Timão: a velocidade de Mirandinha, o toque de bola refinado de Donizeti, a raça e a categoria de Antônio Carlos, a colocação perfeita de Ronaldo embaixo do travessão, a agilidade, inteligência e precisão no chute de Marcelinho Carioca e, é claro, a coragem e a visão de gol de André Luiz.

Enfim, exaltava o, para ele incomparável, talento de todo o time corintiano, até dos reservas e juniores, sem esquecer do técnico, do auxiliar deste, do treinador de goleiros, do médico e até do massagista. Se bobeasse, teceria loas para os garotinhos da equipe da categoria dente de leite, que mal estavam aprendendo a dar os primeiros toques na bola.

Klaus, por seu turno, um tanto constrangido e cabisbaixo, como se estivesse diante de um chefe poderoso e sábio, de cujo humor dependeria todo o seu futuro, ouvia, calado, curtindo uma imensa humilhação. Vez em quando, ensaiava apresentar algum argumento. E este era, invariavelmente, o de que o Tricolor não perdeu o jogo decisivo. – "Deixou de conquistar o título apenas em decorrência do regulamento" –, insistia, sem nenhum entusiasmo e nenhuma convicção. E, de fato, não convencia o interlocutor.

A cada tímida intervenção, logo era atropelado por João, que agia como se fosse o dono do Corínthians, ou no mínimo o seu treinador, Nelsinho Baptista. Ou algum diretor, quem sabe. Ou representante do patrocinador do clube. Não era nada disso, é claro! Não passava de um pobre coitado, sempre às voltas com a cobrança da patroa, com o assédio dos cobradores e com as crescentes dificuldades para prover o mínimo de sustento à família.

Sequer sócio do clube conseguia ser. Não teria como pagar as mensalidades. Os meninos, dois filhos, um de doze e outro de catorze anos, estudavam em um colégio municipal decadente da periferia, onde traficantes de drogas tinham livre trânsito. Bem que gostaria de colocá-los numa escola particular, dessas bem caras, que garantem um ensino de primeira qualidade e mantêm os estudantes a salvo, ou pelo menos mais distantes, da maconha, do crack e da cocaína. Mas como fazer isso, com esse salário miserável, de fome, que recebia, que mal dava para pagar o aluguel do barraco, na favela da Vila Prudente, no qual se "escondia"?!

Afinal, aquilo nem era morar. Era, simplesmente, se esconder. Além de tudo, precisava estar sempre esperto, e atento, para se livrar do assédio e da ameaça dos marginais e, principalmente dos traficantes, que impunham a lei, a ferro e fogo, a poder de balas, naquele violento pedaço de São Paulo.

Um gosto, porém, João, mulato espigado, banguela, com apenas dois dentes na frente, na arcada superior da boca, com uma extensa e feia cicatriz no rosto, tinha, e que lhe causava imenso orgulho: não perdia um único jogo do Coringão dentro do Estado de São Paulo. Fora, era muito difícil de acompanhar, pois não tinha como bancar as viagens. Ainda assim, durante o último Campeonato Brasileiro, chegou a participar de caravanas para o Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e Curitiba, onde quase morreu de frio.

Fiquei pensando, com os meus botões: "como é estranho esse negócio de torcida...A pessoa diz que torce para determinado clube e pronto. Todos acreditam. Não pode estar mentindo? Isto nem passa pela cabeça dos outros. Saboreia as vitórias como se fosse uma façanha sua, pessoal. E tripudia sobre os adversários, encarados com inferioridade, porque 'seus' times não conseguiram as conquistas obtidas pelo 'dela'".

Depois de meia hora, ou pouco menos, saboreando o triunfo, posando de soberano, com ares de imensa sabedoria e de quem é dotado de supremo bom gosto, João teve um rápido e raro instante de condescendência com sua "vítima". "Pelo menos vocês chegaram à final. E o Porco? Que vexame!", afirmou, triunfante, quase tão feliz com o fracasso palmeirense quanto com o sucesso do Corínthians.

Klaus, do alto dos seus um metro e oitenta de altura, cabelos loiros e bem cuidados, olhos azuis e brilhantes denotando ser pessoa de saúde perfeita, porte atlético de quem se alimenta do bom e do melhor, freqüenta academias de ginástica, passa férias em Cancun, Paris ou Miami e mora numa confortável mansão no Morumbi, deu um tapinha amistoso nas costas do interlocutor, com seus dedos delicados, de unhas bem aparadas e protegidas com esmalte incolor, e entrou, desolado, em sua Mercedes do ano.

Era físico nuclear de uma estatal, formado pela USP, com pós-graduação na Alemanha e estágios na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Como João, também tinha dois filhos, ambos, igualmente, com doze e catorze anos. Estava longe deles, atualmente, já que os meninos estudavam em um colégio interno caríssimo, situado em Genebra, na Suíça e só voltariam para casa nas férias do fim do ano.

João, sentindo-se o dono do mundo, prosseguiu o seu caminho, empurrando, com alegria, o seu carrinho de lixo, feliz como passarinho. Era o gari responsável pela limpeza na frente da empresa onde Klaus trabalhava e era um dos principais chefes. Coisas do futebol...

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