Monday, July 03, 2006

Mundo do faz-de-conta


Pedro J. Bondaczuk



"A mentira é apenas a verdade fantasiada". Esta observação foi feita por Lord Byron e não deixa de ter seu sentido. Afinal, o mentiroso, para se fazer acreditado, precisa dar um toque de verossimilhança aos casos que inventa e narra. Além de tudo, tem que ter uma boa memória, para evitar contradições. Romances, contos, novelas, peças teatrais e enredos de filmes não são mais do que isso. São situações imaginárias, "vividas" por personagens inventados, baseados em fatos e em pessoas que existem ou existiram. Ou seja, são mentiras, trabalhadas com arte e talento. Nós escritores, portanto, não passamos de rematados mitomaníacos. A expressão, para quem não sabe ou não se lembra, é a forma elegante de se designar um mentiroso.

Claro que há mentiras e mentiras. Algumas são inofensivas e não produzem qualquer efeito, a não ser alimentar conversas entre amigos. Há as que chegam a ser até piedosas. São as que dizemos para levantar o moral de alguém, afirmando ao feio, por exemplo, que é bonito, ao burro que tem inteligência e assim por diante. Fazem bem aos que as ouvem e não prejudicam ninguém. Existem as criativas, bem floreadas, sem falhas, absolutamente verossímeis. Em contraposição, algumas são tão evidentes, que o mentiroso é imediatamente desmascarado. O caso extremo de mentira, a calúnia, constitui-se em um crime hediondo. Mancha a moral e a reputação do agredido. E às vezes essa nódoa jamais se apaga.

Anatole France, do alto do seu pessimismo, observou a respeito: "Amo a verdade. Creio que a humanidade precisa dela. Mas precisa ainda mais da mentira que a lisonjeia, a consola, dá-lhe esperanças infinitas. Sem a mentira, os homens morreriam de desespero e tédio". Seria mesmo assim? Tenho as minhas dúvidas. É certo que a mitomania é extremamente comum no mundo. Mas há verdades que não podem ser escondidas, por mais que se tente.

Levanto este tema a propósito de duas pessoas que conheci em minha juventude, em São Caetano do Sul, ambas mentirosas compulsivas. Uma delas, jovem, da minha idade na ocasião, mentia com criatividade. Floreava suas "fábulas" com requintados detalhes de sorte que, quem não o conhecesse, aceitava suas narrativas como absolutamente verdadeiras. Nossa turma apelidou-o de João Faz-de-Conta. O moço gozava de alguns privilégios. Por exemplo, não precisava pagar bebida no barzinho em que nos reuníamos. Sempre que tínhamos pela frente uma noite chata de sábado, o nosso "contador de casos" era convidado à nossa mesa.

Lá pela terceira cerveja, estávamos todos eletrizados, prestando atenção a suas narrativas, que embora soubéssemos ser inventadas, eram tão excitantes quanto o melhor dos filmes de mistério ou de espionagem. O João Faz-de-Conta era um talento em bruto. Tivesse domínio do texto, ganharia muito dinheiro com as histórias que inventava. No entanto não passava de um trabalhador braçal, de um faxineiro em uma agência de um grande banco da cidade. O outro mentiroso era o Torturelli. Não sei se esse era seu sobrenome ou algum apelido maldoso dado pela turma. Torturava a quem cruzasse seu caminho. Era um senhor idoso e deveria andar pela casa dos 70 anos. Ninguém sabia ao certo. Afinal, como acreditar no que dizia?

O velhinho era o oposto do João Faz-de-Conta. Suas narrativas eram repletas de falhas e contradições. Suas mentiras eram ostensivas demais para que houvesse um único ingênuo que acreditasse em qualquer coisa que dissesse. Além de tudo, era esquentado. Tornava-se agressivo quando tomava alguma pinguinha. O dono do bar recomendava que ninguém lhe pagasse qualquer bebida, para não ter encrenca. Era motivo de chacota de todos, principalmente quando se irritava e corria atrás dos gozadores na tentativa de agredi-los. Apesar de judiado, porém, não deixava de freqüentar o lugar. No fundo, no fundo, era um tanto masoquista. Vez por outra, arranjava algum interlocutor, ou melhor, ouvinte das suas estapafúrdias patranhas. Uns, eram gentis e não faziam qualquer observação. Outros, caíam na gargalhada, para a ira do Torturelli.

Wilson Luiz Sanvito, em uma deliciosa crônica publicada em 1990 no "Caderno de Sábado" do "Jornal da Tarde", dá o antídoto para não se deixar levar pelos mitomaníacos: "Estratégia para se defender dos mentirosos: não se deve acreditar senão na metade daquilo que os homens dizem. Muito bem. Mas em que metade?", indaga. Boa pergunta. No caso do Torturelli era fácil. Bastava descrer de tudo o que dissesse. Mas no do João Faz-de-Conta, verdadeiro artista da mentira, era impossível distinguir os 50% em que se deveria descrer. Grande figura...!

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