Thursday, July 06, 2006

Gesto de bondade


Pedro J. Bondaczuk


O desencanto que se apossa da maioria das pessoas, nestes tempos loucos de insensatez e de violência, é tão grande, que pequenos (mas de maiúsculo significado) gestos de bondade e de solidariedade, que se praticam no dia-a-dia (e que não são poucos), passam despercebidos. Ou são ignorados, quando divulgados publicamente. Ou são, na melhor das hipóteses, logo depreciados. No jornalismo, por exemplo, é bastante comum se afirmar que atos positivos, em que ressaltam os melhores aspectos morais e emocionais do homem, "não dão Ibope". Ou seja, não interessam aos leitores. Será?

Não creio! Por exemplo, um fato ocorrido em 11 de abril de 2000, na cidade (resido em Campinas), divulgado, inclusive com chamada de primeira página, pelo Correio Popular, repercutiu bastante, e de maneira favorável. Não digo que as reações favoráveis tenham sido unânimes. E nem poderiam ser. Afinal, as pessoas são diferentes e, como acentuou com grande propriedade o saudoso jornalista e teatrólogo Nelson Rodrigues: "Toda unanimidade é burra". Mas houve grande repercussão. Dezenas de conhecidos comentaram o fato comigo, elogiando, criticando ou ridicularizando até, o que desmente que os leitores de jornais estão ávidos somente por coisas ruins, como escândalos de toda a sorte, violência, desastres, tragédias e tudo o que torna este mundo a réplica do inferno (se é que este existe).

O episódio a que me refiro, objeto de excelente matéria publicada no Primeiro Caderno do supra citado jornal, foi o magnífico gesto dos soldados da Polícia Militar, Ferreira e Lacerda, que passaram cinco horas à procura do dono de uma bolsa, contendo documentos e a importância de R$ 250,00, encontrada em uma agência bancária por um cidadão que lhes entregou o objeto.

Ao cabo desse tempo, seus ingentes e espontâneos esforços foram amplamente recompensados: o legítimo proprietário foi, finalmente, localizado. Era o aposentado Alcides Freitas, de 75 anos, para quem a perda dessa quantia (irrisória, para alguns), representava uma tragédia, pois era a sua fonte de recursos de um mês inteiro. A recompensa dos dois PMs não foi, obviamente, material, mas algo muito mais importante e duradouro: a simples alegria de poder prestar um serviço ao próximo.

Alguns indivíduos cépticos, com os quais conversei a respeito, disseram, não sem uma certa dose de cinismo e uma pontinha de despeito, que a atitude dos dois soldados não foi mais do que o cumprimento de uma obrigação ditada por sua profissão. Discordo!

Ferreira e Lacerda foram mais do que meramente "honestos"! Honestidade, a rigor, nunca deveria ser considerada um fenômeno, marca de excelência e muito menos atitude rara. Deveria, isto sim, ser prática corriqueira, usual, amplamente disseminada na vida política e social das comunidades. É uma "obrigação" de toda a pessoa de bem. E foi, na verdade, a virtude do homem que entregou a referida bolsa aos dois soldados. Mesmo assim, sua atitude não deixa de ser destacável (e elogiável) diante das atuais circunstâncias, quando vemos, lemos e ouvimos sobre tanta desonestidade, bandalheira e toda a sorte de corrupção que campeiam em nosso país.

A atitude de ambos, no entanto, foi muito além de meramente honesta. Constituiu-se, na verdade, em um ato louvável, de solidariedade, de generosidade, de altruísmo e de legítima preocupação com os problemas do próximo. Os dois PMs não tinham, por exemplo, nenhuma obrigação de procurar o senhor Alcides para lhe fazer a devolução do objeto que estava em seu poder. Bastaria que divulgassem que estavam com a referida bolsa e o legítimo dono que se preocupasse em reaver o que havia perdido, já que o interesse era todo seu.

Ações como esta, tanto pela sua raridade, quanto pelo valor simbólico que encerram, merecem sempre, e sempre, e cada vez mais, ser exaltadas por todas as formas possíveis e imagináveis, sobretudo junto à juventude, para que possam vir a ser imitadas por um número máximo de pessoas, se possível por todas, e se transformar, quem sabe, em rotina. O mundo seria infinitamente melhor se isso acontecesse.

O romancista português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura de 1998, constatou, em seu livro "Ensaio sobre a Cegueira": "É desta massa que fomos feitos: metade de indiferença e metade de ruindade". A atitude dos soldados Ferreira e Lacerda (e de tantas outras pessoas bondosas, generosas e altruístas cujos gestos de grandeza e de solidariedade sequer vêm a público), felizmente desmentem essa contundente asserção. Ainda assim, é bastante válida uma outra constatação, feita em tom de advertência, pelo desencantado intelectual lusitano: "As pessoas começam por ceder nas pequenas coisas e acabam por perder o sentido da vida". E perdem mesmo... Mas o sentido da vida, ao contrário do que a maioria pensa, não está na busca por um ilusório poder, que nada pode ou por riquezas "que a traça rói e o tempo desfaz". Porquanto, como constatou Lacordaire, "não é o gênio, nem a glória, nem o amor que medem a elevação de nossa alma: É a bondade".

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