Tuesday, July 18, 2006

Heitor Villa-Lobos - Parte II


Pedro J. Bondaczuk

Brincadeiras históricas e desconcertantes

Heitor Villa-Lobos, ao contrário do ar trágico assumido pelos grandes gênios, era como se fosse um meninão. Adorava fazer brincadeiras, agradassem ou não aos que eram vítimas delas. Alguns não o entenderam jamais. Outros, ficaram magoados, pela vida afora, como foi o caso do maestro Guerra Peixe, que mesmo reconhecendo o seu talento, afirmou que o compositor foi “um mau caráter”.

Garantiu que foi prejudicado por ele, embora dissesse que não guardou qualquer mágoa disso. Aliás, existe um grande folclore em torno desse espírito brincalhão, gozador, irreverente de “carioca da gema”.

Durante a realização da Semana de Arte Moderna, período pouco compreendido, mas que lançou as bases do modernismo no Brasil, realizada de 13 a 17 de fevereiro de 1922, em São Paulo, sob o patrocínio de Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras, essa irreverência veio à tona.

Em pleno Teatro Municipal, templo sacrossanto do esnobismo paulista, Villa-Lobos teve a suprema coragem de apresentar-se trajando fraque, cartola, a indefectível gravata borboleta, porém sem camisa e sem sapatos. Foi um escândalo, um “deboche”, conforme destacaram os jornais da época.

Poucos entenderam, no entanto, na ocasião, que o objetivo dos promotores do evento era exatamente esse. O de ridicularizar o artificialismo que então predominava, não apenas nas artes como a Literatura, a Música e a Pintura, mas, principalmente, nos “modismos”, nos trejeitos e nos gostos da chamada “gente bem”, todos importados e inadaptáveis ao nosso tropicalismo.

Anos mais tarde, comentando os caminhos do nacionalismo que impôs em seu estilo de composição e, principalmente, em sua temática, o nosso genial e irreverente artista sapecou: “Eu dei um pontapé na tradição. Eu sou de hoje”. Mais do que isso. Parodiando Drummond de Andrade, Villa-Lobos não era somente “moderno”, mas “eterno”.

Para encarnar na arte o espírito do brasileiro, seria impossível que assumisse na vida uma postura diferente da que caracteriza o nosso comportamento. Ficaria chocante em demasia um compositor tentar transpor para as suas obras o brasileirismo de uma forma sisuda, formal, engessada em regras, conceitos e preconceitos que não dizem nada para nós.

A nossa gente é irreverente por natureza. E admitamos, é até um pouco irresponsável na sua maneira de proceder. Mas é alegre, de uma alegria contagiante, que impressiona a todos os que nos visitam ou que conosco mantêm contato pela primeira vez. Somos um povo que sabe rir de suas próprias misérias, posturas e deficiências de caráter.

Temos, entranhada em nós, aquela postura “macunaimiana”, que Mário de Andrade soube perceber tão bem e transpor para o seu delicioso personagem. É claro que o Macunaíma é uma expressão caricatural, e não literal, do brasileiro. Mas, em certa medida, todos temos, em nosso comportamento, um pouquinho dele.E como toda a caricatura, esta também realça as nossas características que mais saltam à vista.

Villa-Lobos foi o autêntico compositor nacionalista brasileiro. E como tal, não poderia ser diferente do que foi. Gostava de um “chorinho”, como certamente todos gostamos. Adorava tudo o que fosse autenticamente nosso. A feijoada, o samba, a radionovela (posteriormente a televisão, quando esta apareceu por aqui), os filmes de “bang-bang”, a conversa vazia, a patuscada, o Carnaval, o papo jogado fora nas tardes quentes e preguiçosas do verão carioca, a última anedota, geralmente do papagaio ou do português, etc.

Isto, no entanto, não quer dizer que fosse um irresponsável. Que não desejasse uma vida melhor para si próprio e para todos os brasileiros ou que não sonhasse com um País onde não faltasse comida e moradia para ninguém, escola para todas as crianças, salário digno para todo o pai de família, probidade e coerência nos administradores e tudo aquilo que cada um de nós reivindica, nas ruas, nos bares, em cartas para as seções de leitores dos jornais, em artigos e em todas as nossas manifestações, públicas ou privadas.

Dizem que quando o compositor foi, pela primeira vez, à Europa, lhe perguntaram com que mestre europeu iria estudar. Naquela época, era costume isso. Era comum jovens talentosos da América Latina irem ao Velho Mundo para aperfeiçoarem-se com os músicos mais ilustres e conhecidos de então. Villa-Lobos, meio na base da gozação, como era do seu feitio, encarou o interlocutor e com um sorriso um tanto maroto, retrucou: “Quem disse que eu vim para cá para tomar aulas com alguém? Vocês é que vão estudar comigo”.


(Ensaio publicado na página 26, Especial, do Correio Popular, em 4 de abril de 1987).

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