Fim de jornada
Pedro J. Bondaczuk
O mundo literário nacional e, por que não dizer, também o mundial e, sem nenhum exagero, sobretudo o Planeta Terra ficaram mais pobres, neste domingo de sol (pelo menos na minha cidade), calorento e abafado de 27 de fevereiro de 2011, com a morte, em Porto Alegre, de um dos escritores mais lúcidos, éticos, competentes e criativos: Moacir Scliar.
Termina, para ele, portanto, uma jornada exemplar por esta aventura fascinante, e única, que é a vida, iniciada em 23 de março de 1937, na mesma cidade em que ficou “encantado” (para recorrer à metáfora usada por Guimarães Rosa para qualificar a morte). Sua memória será cultuada por milhões de seus leitores (entre os quais, este Editor). Ele é, portanto, um dos que têm chance de sobreviver ao esquecimento ditado pela passagem do tempo.
Escrevi muito a respeito desse médico sanitarista e, sobretudo, desse notável homem de letras, meu conterrâneo, por identificar-me com suas idéias e estilo. Mesmo jamais cruzando meus caminhos com os dele (o que lamento) e tendo absoluta certeza de que ele nem sabia da minha existência, sempre o considerei um “amigo”. Por que? Simples! Porque foi enorme a sua influência na minha forma de encarar o mundo e de fazer literatura. E só os amigos muito diletos têm essa capacidade de nos influenciar para o bem.
Dos mais de 70 livros que Moacir Scliar nos legou, devo ter lido, seguramente, pelo menos a metade. Só não li mais por não dispor de recursos para comprar tudo o que gosto e preciso. Mas creio que o tanto que li não é nada desprezível. Ademais, já escrevi muito a seu respeito e não apenas um texto, mas vários. Portanto, este meu pífio, mas honesto testemunho não é daqueles oportunistas, dados, apenas, em ocasiões como esta, de morte de alguma personalidade, para compartilhar do prestígio que quem morreu ostentava.
Está de luto, também, a augusta Academia Brasileira de Letras, a casa de Machado de Assis, com a morte de um de seus maiores expoentes e mais ativos membros. Afinal, Moacir Scliar obteve, por inegáveis méritos literários, sua cadeira na ABL em 2003. Entendo que esse ingresso demorou muito. Mas... antes tarde, do que nunca.
Quando digo que a perda é grande para a literatura mundial, estou longe de incorrer em exagero. Exageraria, e mais, cometeria tremenda heresia se não burrice, se afirmasse o contrário. Afinal, trata-se de um dos raros escritores brasileiros conhecidos (e apreciados) no Exterior, já que várias de suas obras foram traduzidas para pelo menos doze idiomas. Quem é do ramo sabe o quanto é complicado “sair da toca” no mero e acanhado âmbito doméstico. É verdadeira aventura, autêntica saga de persistência, mais conhecida como teimosia. Imaginem além fronteiras!
A morte de Moacir Scliar, e nas circunstâncias que ocorreu, suscita-me idêntico sentimento que tive quando do falecimento do meu pai, há três anos, ou seja, um misto de raiva, frustração, saudade antecipada e outros tantos sentimentos concretos, mas indefiníveis. Vem-me a memória um texto do escritor e psiquiatra Roberto Freire (não confundir com o político), que citei na ocasião, para homenagear a memória do meu genitor.
“A morte é feia, burra, medíocre, suja, desleal, grossa, parcial, desonesta, arbitrária, injusta, covarde, chata, indecorosa, infiel, premeditada, viciosa, incômoda, óbvia, incomunicável, cafajeste, ladra, assassina, extorsiva, ingrata, irresponsável, pretensiosa, caloteira, agressiva, mentirosa, imoral, amoral, torpe, pérfida, cretina, reacionária, antipática, lúgubre, atrevida, alienada, gulosa, quadrada e pornográfica! Enfim, o que a gente pensa sobre a tinhosa, não fosse a necessidade de atendermos a certas imposições de ordem moral da lei de imprensa, poderia ser simplesmente resumido no mais eficiente e definitivo dos palavrões. Aquele, vocês sabem!”.
Estas palavras foram escritas na crônica “O Post último S. S. Show”, publicada na coluna “Cidade Aflita”, da extinta “Última Hora” de São Paulo, em 25 de novembro de 1964, sobre a morte do jornalista e notável homem de televisão Silveira Sampaio (de quem também fui fiel admirador e ainda sou, pois na minha memória ele continua e continuará sempre vivo).
Escrever sobre um homem de letras e não mencionar nada do que escreveu é, na minha avaliação, tremenda mancada, falta de educação e até mesmo heresia. Tenho, diante de mim, em minha mesa de trabalho, uma das milhares de crônicas de Moacir Scliar, das tantas que me ilustraram e emocionaram, intitulada “Síndrome do ninho vazio”. Passo por essa situação, atualmente, com meus quatro filhos já criados e encaminhados na vida e, por isso, não mais “debaixo das minhas protetoras asas”.
Em certo trecho, Moacir escreve: “Em algum momento os filhos têm de sair do reduto paterno-materno. A época para isso varia de acordo com as culturas, com as famílias. Nos Estados Unidos, a independência tradicionalmente ocorre no momento em que o jovem vai para o college, que mais ou menos equivale à nossa universidade. A regra é que isso se faça com a mudança de cidade (quanto mais distante melhor), e a partir daí o rapaz ou a moça terão de tomar conta de si mesmos”.
E Scliar prossegue: “Na classe média brasileira a coisa sempre foi mais flexível, e essa flexibilidade aumentou na medida em que cresceu a expectativa de vida e na medida em que a independência, cada vez mais dependente do diploma, do mestrado, do doutorado, foi sendo adiada. Uma adolescência prolongada, portanto, mas não infinita (ou, parafraseando Vinícius, infinita enquanto dura). De qualquer modo, a ideia da família extensa , que até era uim costume no período colonial (entre os ricos ao menos) foi ficando coisa do passado”.
E Scliar conclui essa magnífica crônica assim: “Voar É com os Pássaros era o título de um antigo e clássico filme. Não, voar não é só com os pássaros. Nós também voamos, seja nos aviões (quando os voos não são cancelados), seja através de nossa imaginação. Cada ninho, onde quer que esteja, é uma base para os sonhos. Entre eles, claro, o sonho de nossa própria casa”.
Caso algo nosso, imaterial, nos sobreviva, (além da mera lembrança) em algum lugar do cosmo, ouso dizer que Scliar acaba de regressar à sua “própria casa”, da qual saiu apenas no curto espaço de tempo de quase 74 anos em que viveu entre nós. Nunca me esqueço de uma declaração do cientista alemão Werner Von Braun (responsável pelas viagens espaciais da NASA), que disse: “A natureza desconhece a extinção. Só conhece a transformação”. E Moacir Scliar não se extinguiu de fato e jamais se extinguirá. Transformou-se e regressou à condição original, de “poeira de uma estrela”, e das mais brilhantes.
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