Thursday, February 18, 2010




A megadivulgação

Pedro J. Bondaczuk

Os enredos das escolas de samba, em especial das do Rio de Janeiro, podem ou não ser classificados como óperas populares? Eu entendo que sim Um amigo muito querido, intelectual de grande reputação (e bastante respeitado nos meios culturas do País, mas que me pediu para não ser identificado) assegura que não. Afirmou, na conversa que tivemos a respeito, na segunda-feira de carnaval (cujos trechos já relatei anteriormente) que fui afoito em demasia ao fazer tal classificação, influenciado, no seu entender, pelo momento, porquanto acabara de assistir na TV os desfiles da Marquês de Sapucaí e ainda estava com os sons e imagens do evento fresquinhos na cabeça.
Gosto de discutir com essa pessoa. Nossa maneira de encarar o mundo é diametralmente oposta. Conosco ocorre o fenômeno da atração intelectual dos opostos. Sempre que nos encontramos, há um choque, uma violenta colisão de idéias. Não me lembro de um só assunto em que já tivéssemos concordado. No entanto, gosto demais dessa pessoa e sinto que a recíproca é verdadeira.
Nossa intenção, nesses acalorados debates (que aos desavisados parecem briga, mas não são, apesar dos gritos e não raro até dos palavrões de ambos nesses barulhentos confrontos) sequer é a de convencer um ao outro (ademais, missão impossível), mas marcarmos nossas respectivas posições.
Ao final dessas refregas retóricas, nunca há vencedores ou vencidos. Apesar da nossa veemência na defesa das respectivas teses (e esse é o único ponto em que nos igualamos), temos, ambos, a plena convicção que um gosta do outro e o respeita intelectualmente. É verdade que não parece. Mas.... as aparências, como sempre, enganam.
Uma das coisas que mencionei, na dita discussão, é a capacidade que os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro têm de divulgar, e de fixar na memória do povo, histórias, fatos, conceitos, personagens etc.etc.etc. Nisso, os enredos superam, em muito, qualquer dos temas tratados pelas mais sofisticadas, conhecidas e badaladas óperas.
“Veja o que ocorreu com o ‘Dom Quixote de La Mancha’. Há cinco anos, o mundo das letras celebrou o quarto centenário do lançamento da primeira parte dessa obra-prima de Miguel de Cervantes. Jornais, revistas literárias, intelectuais de todas as tendências, enfim, as pessoas cultas do mundo inteiro, celebraram o fato. Perguntasse, porém, na época, a qualquer pessoa da rua de quem se tratava. Ninguém sabia. E divulgação foi o que não faltou”, lembrei.
O amigo aduziu: “eu mesmo publiquei na ocasião um ensaio que escrevi, enfatizando o símbolo que há por trás de Dom Quixote e de Sancho Pança”. “Eu sei”, respondi-lhe. "Li e gostei das suas colocações. Da minha parte, marquei bobeira e não escrevi nada a respeito”, reconheci.
“Pergunte hoje, a qualquer pessoa, não importa seu grau de cultura ou classe social, quem é Dom Quixote. Ela pode até dizer algum disparate a respeito, mas saberá de quem se trata. Por que? Porque, ou assistiu o desfile da Escola de Samba União da Ilha, que enfocou os personagens de Miguel Cervantes em seu enredo, no sambódromo, ou viu-o na televisão (estima-se que o desfile teve um bilhão e meio de espectadores em todo o mundo) ou ouviu falar dele. Ou seja, o célebre livro teve, em apenas reles uma hora e vinte e dois minutos, muito maior divulgação do que havia tido nos últimos 405 anos. E você sabe muito bem que não se trata de exagero”, afirmei.
“E no que isso prova que se trate de ópera?”, teimou o meu amigo, não disposto a se dar por vencido. Coloquei, novamente, a fita que gravei do desfile na TV, para que ele visse as alegorias enfatizando todos os aspectos do livro. Chamei-lhe a atenção, sobretudo, para o acrobata que estava agarrado a uma das pás do moinho do carro alegórico que ilustrava a caráter um dos maiores delírios do “cavaleiro de triste figura" de Cervantes. A seguir, fiz o mesmo que havia feito em relação à letra do samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense. Dei-lhe o texto para ler. Não resisti, porém, e li-o, eu mesmo, em voz alta:
“Voltou a ilha/delira o povo de alegria/nessa folia sou fidalgo, sou leitor/cavaleiro sonhador./Meu mundo é de magia./Vou cavalgar no Rocinante,/meu escudeiro é Sancho Pança./Se Dulcinéia é meu amor/quem eu sou?/Dom Quixote de La Mancha.//O gigante moinho me viu, deu no pé./O povo grita: olé!/Nesse feitiço tem castanhola./A bateria, hoje, deita e rola, /vesti a fantasia, fui à luta,/venci manadas, rebanhos/fiz de uma bacia meu elmo de glórias,/meus livros se perderam pela história,/enfim fui vencido pela Branca Lua./Voltei pra casa esquecendo as aventuras./O tempo ficou com meus ideais./Quimeras são imortais.//A Ilha vem cantar/mais um sonho impossível a sonhar./Quem é que não tem uma louca ilusão/e um Quixote no seu coração?”.
“Viu?Lindo! Tenho certeza que Cervantes se sentiria sumamente orgulhoso com essa interpretação tão clara e precisa da sua obra-prima. Quem me dera, um dia, servir de inspiração para um enredo tão bem-feito”, concluí, aos gritos, não conseguindo conter meu entusiasmo.
“Isso lhe cairia muito bem, Pedrão. Você não só tem um Quixote no coração. É o próprio”, concluiu o amigo, sorrindo. Até agora, não sei se foi um elogio ou outra das suas tantas tiradas irônicas. Só sei que não o convenci de que enredo de escola de samba pode e deve ser classificado como ópera. Quais seus argumentos? Tenha paciência e aguarde o próximo texto.

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