Apresentação sem reprise
Pedro J. Bondaczuk
Relatei-lhes, em textos anteriores, uma refrega retórica que mantive com um amigo, intelectual de grande reputação e respeito, embora no calor da discussão parecêssemos,. Apenas, dois torcedores de futebol de times adversários discutindo a derrota do favorito para a “zebra”. Talvez lembrássemos remotamente o famoso debate entre Cícero e Catilina, talvez. Só que o palco, não era o augusto Senado romano e o tema não se referia ao destino de Roma, a grande superpotência política e militar da antiguidade.
O cenário dessa refrega era meu confortável gabinete de trabalho, dotado de toda a moderna parafernália de comunicações que a tecnologia desenvolveu. Os debatedores, posto que intelectuais, por sua vez, estavam anos-luz de disporem do poder e da representatividade de Cícero e de Catilina. E o tema de tanta retórica despendida era de somenos importância (diria até que nenhuma). Debatíamos sobre se enredos de escolas de samba, notadamente das do Rio de Janeiro, podem ou não ser classificados de óperas. Eu defendia a tese do sim. Meu amigo contrapunha-se, argumentando pelo não.
Passamos horas nos digladiando em torno dessa tola questão. Todo esse nosso esforço, porém, não passava de mero treinamento mental, de exercício de argumentação e contra-argumentação, de tese e antítese, para quando tivermos que encarar questões de fato relevantes e esclarecermos equívocos sobre assuntos em que não se pode equivocar.
Meu erudito amigo (e põe erudição nisso), que a essa altura estava perdendo a discussão (pelo menos foi como interpretei o fato de já estar apelando para ofensas pessoais), saiu com um argumento a favor da sua tese que, devo admitir, foi dos mais sólidos.
“Veja a ópera ‘Aida’, Pedrão. Você a conhece bem demais, pois assistimos juntos sua apresentação no Credicard Hall, em São Paulo, em fins de 2007. Apenas para o entendimento dos leigos que vierem a tomar conhecimento desta nossa discussão, e sei que você não a manterá restrita a estas quatro paredes, jornalista abelhudo que é, lembro alguns fatos que cercam esta obra-prima de Giuseppe Verdi. Ela foi composta em 1871, a pedido do vice-rei egípcio, Ismail Pashá, para celebrar a inauguração do Canal de Suez”.
“Sei de tudo isso”, disse-lhe, impaciente. “Vamos ao ponto que você pretende chegar”, insisti. “Calma, nos bons debates, cada qual deve ter seu tempo, sem ser interrompido pelo antagonista. Quando chegar sua vez, você poderá replicar à vontade. Pois bem, a história, contada por Verdi, é a de um comandante militar egípcio, Radamés, que chefiou seus exércitos numa vitoriosa campanha contra a Etiópia. Ao voltar da guerra, aclamado como herói, o faraó ofertou-lhe a mão da filha Amnens em casamento. O herói, todavia, recusou, por preferir casar-se com Aida, a criada da princesa. O faraó, furioso, sentiu-se ofendido. Passou a considerar Radamés de herói a traidor da pátria. E condenou-a à morte. Aida, em vez de sair de cena, decidiu compartilhar o destino do amado”, completou.
“Sei de tudo isso”, reiterei-lhe cada vez mais impaciente. “Onde você quer chegar com toda essa explanação? Vá direto ao ponto!”, desafiei-o. O amigo ressaltou a grandiosidade dessa ópera. Lembrou-me de quando ela foi apresentada no Cairo, aos pés das grandes e milenares pirâmides e da repercussão mundial que essa apresentação teve. “Você não vai querer comparar isso com a Marquês de Sapucaí, não é mesmo?”, concluiu, irônico, torcendo o nariz.
“Tudo bem, a ópera de Verdi é grandiosa. Nunca disse que não. Aliás, nem sei como e porque ela veio parar neste debate. Mas quantas pessoas são necessárias para apresentá-la como seu autor a imaginou? Digo o total, entre artistas, orquestra, figurinistas, cenógrafos, o escambau?”, perguntei. “Pouco mais de duzentas”, respondeu-me o amigo, com ar de triunfo. “Pois bem”, redargui-lhe, “esse número, que você considera grandioso, sequer chega perto da quantidade mínima de componentes apenas da bateria da menor das escolas de samba”, disse-lhe aos berros, achando que desta vez o pegara,
Meu interlocutor, todavia, é um sujeito preparado e, sobretudo, astuto. Em termos de astúcia deixa-me, de longe, no “chinelo”. Contra-argumentou, e com muita lógica: “De 1871 para cá, quantas vezes Aida já foi apresentada ao redor do mundo, por companhias muito diferentes umas das outras? Sem exagerar, podemos ficar na cifra de um milhar de vezes, certo? Foi muito mais, mas fiquemos com essa quantidade. Só você, conforme me disse, já assistiu a três apresentações diferentes. No ano passado, Aida foi apresentada em grande estilo no Coliseu do Porto, em Portugal, pela companhia Grande Ópera de Kazan. As apresentações nesse ano foram muitas, não apenas esta. Agora me responda: quantas vezes mais será possível o público assistir, mesmo que apenas no Rio de Janeiro, o desfile da União da Ilha, que você tanto exaltou? Nenhuma, não é verdade?”.
Diante desse argumento, achei que havia perdido de vez o debate. Não que o amigo houvesse me provado que os enredos das escolas de samba não sejam óperas. Isso ele não provou. Demonstrou, apenas, que, a menos que você grave em vídeo, como eu fiz, os desfiles, você conseguirá assistir a apenas uma e única apresentação. Exaustos, com a garganta seca e ardendo por causa dos nossos gritos na discussão, concertamos que nossa refrega retórica terminou empatada e celebramos o “bom combate” com uma generosa taça de um ótimo cabernet, da safra de 1948. Afinal, ninguém é de ferro!
Pedro J. Bondaczuk
Relatei-lhes, em textos anteriores, uma refrega retórica que mantive com um amigo, intelectual de grande reputação e respeito, embora no calor da discussão parecêssemos,. Apenas, dois torcedores de futebol de times adversários discutindo a derrota do favorito para a “zebra”. Talvez lembrássemos remotamente o famoso debate entre Cícero e Catilina, talvez. Só que o palco, não era o augusto Senado romano e o tema não se referia ao destino de Roma, a grande superpotência política e militar da antiguidade.
O cenário dessa refrega era meu confortável gabinete de trabalho, dotado de toda a moderna parafernália de comunicações que a tecnologia desenvolveu. Os debatedores, posto que intelectuais, por sua vez, estavam anos-luz de disporem do poder e da representatividade de Cícero e de Catilina. E o tema de tanta retórica despendida era de somenos importância (diria até que nenhuma). Debatíamos sobre se enredos de escolas de samba, notadamente das do Rio de Janeiro, podem ou não ser classificados de óperas. Eu defendia a tese do sim. Meu amigo contrapunha-se, argumentando pelo não.
Passamos horas nos digladiando em torno dessa tola questão. Todo esse nosso esforço, porém, não passava de mero treinamento mental, de exercício de argumentação e contra-argumentação, de tese e antítese, para quando tivermos que encarar questões de fato relevantes e esclarecermos equívocos sobre assuntos em que não se pode equivocar.
Meu erudito amigo (e põe erudição nisso), que a essa altura estava perdendo a discussão (pelo menos foi como interpretei o fato de já estar apelando para ofensas pessoais), saiu com um argumento a favor da sua tese que, devo admitir, foi dos mais sólidos.
“Veja a ópera ‘Aida’, Pedrão. Você a conhece bem demais, pois assistimos juntos sua apresentação no Credicard Hall, em São Paulo, em fins de 2007. Apenas para o entendimento dos leigos que vierem a tomar conhecimento desta nossa discussão, e sei que você não a manterá restrita a estas quatro paredes, jornalista abelhudo que é, lembro alguns fatos que cercam esta obra-prima de Giuseppe Verdi. Ela foi composta em 1871, a pedido do vice-rei egípcio, Ismail Pashá, para celebrar a inauguração do Canal de Suez”.
“Sei de tudo isso”, disse-lhe, impaciente. “Vamos ao ponto que você pretende chegar”, insisti. “Calma, nos bons debates, cada qual deve ter seu tempo, sem ser interrompido pelo antagonista. Quando chegar sua vez, você poderá replicar à vontade. Pois bem, a história, contada por Verdi, é a de um comandante militar egípcio, Radamés, que chefiou seus exércitos numa vitoriosa campanha contra a Etiópia. Ao voltar da guerra, aclamado como herói, o faraó ofertou-lhe a mão da filha Amnens em casamento. O herói, todavia, recusou, por preferir casar-se com Aida, a criada da princesa. O faraó, furioso, sentiu-se ofendido. Passou a considerar Radamés de herói a traidor da pátria. E condenou-a à morte. Aida, em vez de sair de cena, decidiu compartilhar o destino do amado”, completou.
“Sei de tudo isso”, reiterei-lhe cada vez mais impaciente. “Onde você quer chegar com toda essa explanação? Vá direto ao ponto!”, desafiei-o. O amigo ressaltou a grandiosidade dessa ópera. Lembrou-me de quando ela foi apresentada no Cairo, aos pés das grandes e milenares pirâmides e da repercussão mundial que essa apresentação teve. “Você não vai querer comparar isso com a Marquês de Sapucaí, não é mesmo?”, concluiu, irônico, torcendo o nariz.
“Tudo bem, a ópera de Verdi é grandiosa. Nunca disse que não. Aliás, nem sei como e porque ela veio parar neste debate. Mas quantas pessoas são necessárias para apresentá-la como seu autor a imaginou? Digo o total, entre artistas, orquestra, figurinistas, cenógrafos, o escambau?”, perguntei. “Pouco mais de duzentas”, respondeu-me o amigo, com ar de triunfo. “Pois bem”, redargui-lhe, “esse número, que você considera grandioso, sequer chega perto da quantidade mínima de componentes apenas da bateria da menor das escolas de samba”, disse-lhe aos berros, achando que desta vez o pegara,
Meu interlocutor, todavia, é um sujeito preparado e, sobretudo, astuto. Em termos de astúcia deixa-me, de longe, no “chinelo”. Contra-argumentou, e com muita lógica: “De 1871 para cá, quantas vezes Aida já foi apresentada ao redor do mundo, por companhias muito diferentes umas das outras? Sem exagerar, podemos ficar na cifra de um milhar de vezes, certo? Foi muito mais, mas fiquemos com essa quantidade. Só você, conforme me disse, já assistiu a três apresentações diferentes. No ano passado, Aida foi apresentada em grande estilo no Coliseu do Porto, em Portugal, pela companhia Grande Ópera de Kazan. As apresentações nesse ano foram muitas, não apenas esta. Agora me responda: quantas vezes mais será possível o público assistir, mesmo que apenas no Rio de Janeiro, o desfile da União da Ilha, que você tanto exaltou? Nenhuma, não é verdade?”.
Diante desse argumento, achei que havia perdido de vez o debate. Não que o amigo houvesse me provado que os enredos das escolas de samba não sejam óperas. Isso ele não provou. Demonstrou, apenas, que, a menos que você grave em vídeo, como eu fiz, os desfiles, você conseguirá assistir a apenas uma e única apresentação. Exaustos, com a garganta seca e ardendo por causa dos nossos gritos na discussão, concertamos que nossa refrega retórica terminou empatada e celebramos o “bom combate” com uma generosa taça de um ótimo cabernet, da safra de 1948. Afinal, ninguém é de ferro!
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