Wednesday, February 07, 2007

O Dostoiewski brasileiro


Pedro J. Bondaczuk


O escritor alagoano Graciliano Ramos é considerado, por muitos críticos (não sem razão), como sendo o “Dostoéwsky brasileiro”. A exemplo do romancista russo, transporta, para os seus romances, muito da sua experiência pessoal com a prepotência dos detentores do poder, além do embate das paixões humanas e da luta do homem contra a natureza.

Todavia, ao contrário do seu colega europeu, Graciliano não cria personagens de extremos tão radicais (ou anjos ou demônios), mas figuras mais verossímeis, de carne e osso, idênticas àquelas com que cruzamos em nosso dia a dia, nas ruas, nos bares, nos escritórios, etc. Daí sua literatura ser até mais atrativa, posto que não menos complexa, do que a produzida por Dostoiéwsky.

Ambos foram vítimas da tirania e pagaram altos preços pelo inconformismo. Graciliano Ramos, comunista convicto, amargou a prisão, por obra e graça da ditadura de Getúlio Vargas, por um delito que seus algozes nunca conseguiram definir com exatidão. Mas soube explorar literariamente essa circunstância tão negativa, inspirando-se nela para produzir verdadeira obra-prima da literatura universal, que é o livro “Memórias do Cárcere”.

Fedor Dostoiéwsky, por seu turno, chegou a ser condenado à morte, sob a acusação de estar ligado a um grupo terrorista, supostamente envolvido em complô para assassinar o czar. Viveu, inclusive, a traumatizante experiência da simulação da sua execução. As “balas” disparadas contra ele, pelo pelotão de fuzilamento, todavia, eram de festim. Mas o episódio deixou profundas marcas em seu espírito.

Enviado para a Sibéria, soube transformar, no entanto, essa dura experiência num dos mais pungentes e humanos romances, não somente da literatura russa, mas mundial. “Recordação da Casa dos Mortos” foi traduzido para várias línguas e é um dos maiores sucessos, de crítica e de público, de todos os tempos.

O que mais agrada o leitor de Graciliano Ramos é a concisão do seu texto. É a parcimônia com que utiliza as palavras, sem excessos e nem faltas, na medida exata. Suas frases são curtas, diretas, medidas, exatas, quase “telegráficas”, sem nenhuma “gordura”, que venha a tornar o texto prolixo e cansativo.

Esse estilo enxuto, no entanto, não compromete a criatividade, na elaboração de personagens e de enredos, e nem tira a força das meticulosas descrições. Pelo contrário: dá-lhes mais vigor. Ressalta, posto que com despojamento vocabular (sua principal característica literária), as imagens, que mais “sugere” do que descreve, geralmente toscas e rudes, como são as pessoas e os lugares do Nordeste brasileiro, cenário das suas obras.

O leitor, por exemplo, chega a “sentir”, até mesmo, insuportável sede, ao ler “Vidas Secas”, tamanho se torna seu envolvimento psicológico com o ambiente, magistralmente descrito por quem viveu e sentiu na carne o fenômeno climático e o drama social de que trata, e que por isso sabe, como ninguém, relatar com clareza e fidelidade, em seus mínimos detalhes.

No conto “Insônia” – que dá título ao livro em que essa história está inserida – Graciliano nos faz “viver”, ou seja, “sentir na pele”, a angústia de quem quer dormir, mas não consegue. E tudo através de sutis sugestões, com a meticulosa, mas despojada, descrição “da pilha de pontas de cigarro a formar uma pirâmide no cinzeiro”, “da luz exterior que incomoda”, “das cobertas que pesam” e de outras tantas sensações, características de quem enfrenta esse drama, raras vezes abordado com tanto realismo por qualquer outro escritor.

Experimentamos idêntica sensação quando lemos Dostoiéwsky. Este, no entanto, tem um estilo muito mais carregado, complexo e prolixo do que o romancista alagoano. Identificamo-nos, não apenas com os torturados personagens criados pelo escritor russo, mas, e principalmente, com o ambiente em que eles gravitam, mesmo sendo tão diverso do nosso.

No livro “Crime e Castigo”, por exemplo, “sofremos” a tortura do personagem central, o estudante assassino; “incorporamos” sua angústia de tentar calar a consciência, que “grita” acusações pela covarde chacina que praticou; “repetimos” sua incoerente justificativa por haver matado a indefesa e avarenta senhora, eliminada por “não fazer falta para ninguém”, e cujo dinheiro poderia ser melhor aproveitado por alguém “com um brilhante futuro pela frente”, etc.

Na “Recordação da Casa dos Mortos”, “vivemos” o ambiente opressivo de uma prisão da Sibéria, “tumba” onde estão “sepultados” vivos aqueles que ousam se rebelar contra os detentores do poder político. A sensação que Dostoiéwsky nos transmite é a de morte, posto que social, diante da falta de perspectivas e de esperanças dos prisioneiros encerrados nesse inóspito campo de detenção, quanto ao futuro.

Enfim, embora separados no tempo e no espaço, nascidos e criados em países com condições, climas, culturas, histórias e realidades tão diferentes, há algo de comum, que os identifica e aproxima. É alguma coisa que vai muito além do mero talento (inegável) que ambos ostentam. Sente-se, em suas obras, sobretudo o que deve ser essencial num bom romance e que os dois têm de sobra: autenticidade.

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