Wednesday, February 28, 2007

Lembranças da várzea - 15


Pedro J. Bondaczuk


Os pontas do Flamenguinho – numa época em que essa função não só existia (hoje não existe mais), mas era extremamente valorizada – merecem um capítulo a parte nestas reminiscências. Eram jogadores fundamentais no vitorioso esquema tático que adotei, pelas qualidades técnicas que tinham e pelo alto rendimento que sempre mostraram em campo. Com um condicionamento físico invejável (e raro na várzea) os dois titulares – Jair, na direita e Vicentinho, na esquerda – atravessavam temporadas inteiras sem serem substituídos uma só vez, nem por eventuais contusões e muito menos por quedas de rendimento. Embora fisicamente não lembrassem, em nada, os grandes pontas da época, nossa torcida chamava o Jair e o Vicentinho de Garrincha e Canhoteiro, respectivamente, por causa dos seus dribles.
Seus reservas imediatos, embora tecnicamente não ficassem nada a dever aos donos das posições, como pessoas tinham comportamentos (dentro e fora de campo) diametralmente opostos a ambos. Eram temperamentais, briguentos, aguerridos e um tanto irresponsáveis. Marrom, por exemplo, só jogava bem se ingerisse um copo, tipo americano, cheio até a boca, de cachaça. Era um tanto folclórico e, na vila, era alvo de inúmeras brincadeiras (não raro, de mau-gosto) dos colegas. Diga-se, a seu favor, porém, que jamais se zangava ou apelava com ninguém. Levava tudo na esportiva, por mais que tentassem o tirar do sério.
Claro que em jogos de campeonato eu evitava utilizar esse jogador. Felizmente, nunca precisei. Dificilmente algum árbitro deixaria de observar seu estado de semi-embriaguez e o Flamenguinho até correria riscos de ser punido, com perda de pontos e até com suspensão, por isso, caso estivesse em campo em algum jogo oficial. E sóbrio, o Marrom (que tinha esse apelido por ser mulato) não rendia absolutamente nada. Sempre achei isso muito esquisito.
Usei-o, apenas, em uma única partida, e quando disputávamos, ainda, a Segunda Divisão. Foi um risco, eu sei, mas valeu a pena. Nosso ponta-direita reserva desmontou, com seus dribles desconcertantes – que lembravam muito os do Garrincha – todo o esquema defensivo do adversário. Tomou tantas faltas, que provocou a expulsão do seu marcador. Felizmente, o Jair tinha uma saúde de ferro e era, invariavelmente, o primeiro a chegar ao vestiário, sempre disposto a jogar. E jogava! E bem!
Vicentinho, por seu turno, era exemplar, tanto como atleta, quanto pelo seu comportamento fora do gramado. Em termos de vida, era a “cópia” exata, o “clone” do Neuclair, de quem era amigo inseparável. Profundamente religioso, católico praticante, era cursilhista e dava aulas para candidatos ao casamento numa igreja de São Caetano do Sul. Aconselhava todo o mundo e encabeçava as rezas no vestiário, antes e depois de cada jogo.
Em campo, todavia, era um leão. De pequena estatura, canhoto nato, tinha um drible infernal, progressivo e desconcertante. Mas a sua principal virtude era a perfeição nos cruzamentos para a área. Não errava, praticamente, nenhum. Punha a bola onde quisesse, como se a lançasse com as mãos. Graças a ele (e ao Celso, logicamente, a nossa maior estrela), Tatinho, o nosso centroavante, e artilheiro em todas as competições que disputou, consagrou-se como o melhor cabeceador da várzea sancaetanense.
O reserva do Vicentinho, Marinho, era seu irmão. Nunca, todavia, conheci duas pessoas mais diferentes do que esses dois. A começar pela compleição física. Enquanto um era baixinho, pernas curtas e um tanto atarracado, o outro era alto, com quase 1,80m, esguio e veloz. Mas não tinha nem metade do domínio de bola do irmão. E não cruzava tão bem. Mas tinha, como característica, entrar driblando em diagonal e arrematar com precisão para o gol adversário. Ou seja, nas raras vezes que entrou como titular, não se constituiu no “garçom” do Tatinho. Preferia, nessas ocasiões, ele próprio, fazer os seus gols. E invariavelmente fazia. Era um dos astros do nosso segundo quadro.
Ao contrário do Vicentinho, Marinho era mulherengo e boêmio. Mas foi um dos melhores amigos que já tive na vida. Essa amizade, aliás, prejudicou-o, bastante, como jogador. Eu evitava de lhe dar a camisa titular, para escapar de eventuais críticas, de que o estaria protegendo. Nunca misturei vida pessoal com minhas atividades de técnico. Não daria certo!
É verdade que o Vicentinho era mais útil no meu esquema tático. Mas, como o Marinho chutava bem com os dois pés, eu poderia utilizá-lo, sem nenhum problema, na ponta-direita, para se revezar com o Jair. Nunca o fiz, contudo, para que não dissessem que eu privilegiava os amigos na escalação do time. Era ele o meu companheiro de aventuras amorosas, principalmente em Mauá, para onde íamos, freqüentemente, por causa da fama que essa cidade ostentava, de ter as garotas mais bonitas da região. E, parodiando Vinicius de Moraes, “que me perdoem as feias, mas beleza é fundamental!”
Era raro o dia em que cada um de nós não arrumava uma menina diferente, nessas sortidas pelas noites do ABC. Não queríamos, na ocasião, nada sério, nenhum compromisso, mas só pequenas e inconseqüentes aventuras. Afinal, tínhamos, ambos, míseros vinte e um anos e uma energia para ninguém botar defeito. Entendíamo-nos apenas pelo olhar e nunca trocamos, uma só vez, palavras que fossem um pouco mais ásperas ou agressivas. Éramos mais do que amigos, verdadeiros irmãos (embora não consangüíneos), inseparáveis e leais um com o outro. Mas apenas fora de campo...

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