Thursday, February 22, 2007

Maratona de angústias


Pedro J. Bondaczuk


A vida do artista, notadamente do escritor – e, mais especialmente, ainda, do poeta – é uma contínua e quase interminável maratona de angústias. Esse indivíduo sensível, dotado do raro dom de vislumbrar além da realidade, concebe mundos fantásticos, de luz e paz, mas se angustia, e chega a beirar o desespero, ao constatar que, em decorrência de comportamentos equivocados (próprios e dos demais companheiros dessa aventura incrível e sem reprise, que é o privilégio de viver, cujo termo desconhecemos) a realidade é muito diferente das suas concepções ideais.
O artista mantém um duelo permanente em busca do perfeito e do belo. Suas obras, por mais que se aproximem da perfeição, nunca o satisfazem. Sempre há um detalhe, uma nuance, um “que” a mais a ser aperfeiçoado, cortado, acrescentado, burilado, polido etc. É um esforço, um trabalho, uma faina sem fim. Dependesse apenas dele, nenhum poema, nenhuma tela, nenhuma escultura ou composição musical seriam, jamais, dados por concluídos. O artista se debruçaria sobre elas uma vida inteira, até seu derradeiro suspiro, no intento de fazê-la perfeita. O resultado, claro, seria frustração. A perfeição é vedada aos reles mortais.
Guilherme de Almeida estava coberto de razão ao escrever, na crônica “Literatice”, publicada em sua então tradicional coluna “Eco ao longo dos meus passos” do jornal “O Estado de São Paulo”, em 2 de agosto de 1968: “O estudo do belo é apenas um duelo no qual o artista grita de terror antes de ser vencido”. A beleza, literalmente (ao contrário do que se pensa, ou seja, que acalme) aterroriza, pelo seu mistério, sua transcendência e profundidade. Aterroriza e escraviza. Coage o artista, o intima, duela com ele e o vence.
Todas as artes me atraem, me fascinam, me encantam, me embevecem e...me aterrorizam. A que me causa maior fascínio, todavia, é a música. É o talento de juntar sons dispersos e variados, que isoladamente não passariam de incômodos ruídos, mas que, em conjunto, expressam harmonia, embevecem a alma e produzem sensações agradáveis (e inenarráveis) na mente e até no corpo.
Consta, da mitologia grega, que o mais talentoso músico que já viveu, quer como intérprete, quer como compositor, foi Orfeu, filho da musa Calíope. Quando tocava sua lira, que ganhou de Apolo (o qual, se dizia, seria seu verdadeiro pai), todos os seres viventes, animais ou vegetais, se submetiam ao seu encanto. Isso, claro, antes da trágica perda de Eurídice, sua amada, à qual desposou. Depois... Bem, essa fase não cabe aqui, nestas considerações.
Quando Orfeu tocava sua lira, os pássaros paravam de voar e se reuniam ao seu redor, embevecidos com tamanha harmonia. Os animais selvagens amansavam e se tornavam inofensivos. Sua música tinha o poder de acalmar as mais perigosas feras a ponto de adormecê-las. Até as árvores se curvavam, em reverência, e para apreender cada nota musical, que reverberavam e multiplicavam de intensidade.
A música, hoje, é tida, nos mais avançados centros médicos dos Estados Unidos, da Europa e do Brasil, como um santo remédio. A medicina incorporou-a ao seu arsenal terapêutico e até lhe destinou uma nova disciplina: a musicoterapia. Já em culturas antigas, numa época em que não existiam as sofisticadas drogas de hoje para relaxar o organismo e possibilitar que a natureza cumprisse seu papel, fazendo com que o corpo liberasse endorfina e acelerasse a regeneração orgânica, essa arte era utilizada para abreviar a recuperação de doentes.
Depois da Segunda Guerra Mundial, alguns médicos constataram que a música tem a capacidade de derrubar as barreiras psicológicas que os enfermos desenvolvem e de fazer com que sua condição mental se estabilize. E o método se mostra sumamente eficaz não apenas no tratamento de doenças de fundo nervoso. Até pacientes com câncer vêm sendo submetidos a essa agradabilíssima terapia, com resultados surpreendentes e, não raro, “milagrosos”.
Diante do mistério da beleza – da qual me considero eterno servidor – faço minha a indagação de Ernesto Sábato, em seu livro “Antes do fim”: “A que epifânias de enigmáticos deuses o destino me conduziu?”. Sim, a que? Onde, quando e por que fiz essa opção de vida, que me torna tão diferente dos meus pares? Não sei!
Só sei que a cada manhã, recito, contrito, a mesma prece de Charles Baudelaire: “Ó Senhor! Dai-me força e coragem para contemplar sem asco meu corpo e meu coração!”. O primeiro, dada a deformação causada pela deterioração natural produzida pelos anos. O segundo, tendo que resistir à cotidiana e constante maratona de angústias, ditada pela frustração de jamais atingir a beleza absoluta e irretocável, por mais que tente. E, arremato estas esparsas reflexões com a constatação de Ernesto Sábato: “Ainda que seja terrível compreendê-lo, a vida se faz um rascunho, e não nos é dado corrigir suas páginas”. O que for escrito, permanecerá, para sempre, intocável e sem possibilidades de emendas, ou como testemunho da nossa incompetência, ou como libelo do nosso estranho destino.

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