Thursday, April 27, 2006

Sombra e substância


Pedro J. Bondaczuk


O homem, no afã de conquistar o abstrato – fama, fortuna e poder – perde o concreto, que é o ato puro de viver. A vida é dádiva, privilégio, bênção, sagração. Este é seu verdadeiro e único sentido. O mais, são fantasias, delírios, elucubrações. As pessoas – raras são as exceções (quando existem) – privam-se dos pequenos prazeres, que somados, se revelam maiúsculos... Senão essenciais... Senão tudo o que de fato vale a pena... Senão o verdadeiro "tosão de ouro" digno de se conquistar... Senão a justificação da existência...
Somos educados para a competição, mas nem sempre (ou quase nunca) estamos dispostos a seguir regras. Embora retoricamente condenemos essa atitude, na prática agimos achando que os meios (lícitos ou não, éticos ou não, justos ou não) justificam os fins. Corremos atrás de sombras. A substância não se faz presente. O homem abre mão do usufruto da beleza que existe em tudo o que nos cerca, bastando apenas um pouco de atenção para ser percebida e aproveitada – e onde reside a verdadeira felicidade – foge das emoções sadias, para tentar conquistar o abstrato: fama, fortuna e poder. Trilogia maldita que desgraça multidões! Sombras, fumaça, ilusões...
O poeta William Butler Yeats recomenda: "Unifique seus pensamentos a marteladas..." É isto...Agimos, em geral, sem pensar em profundidade em nossos atos e suas conseqüências. Não pensamos de maneira unitária. Nossas idéias são dispersas, vagas, contraditórias. Temos que unificá-las...Mesmo que a "marteladas"... Os verdadeiros prazeres, aqueles que justificam uma existência, são simples e gratuitos. Estão ao alcance das mãos de qualquer um que os queira usufruir. No entanto, complicamos tanto a nossa vida! No entanto, nos afligimos por tão pouco! No entanto, tentamos, na maior parte do nosso tempo, agarrar sombras! Não agimos assim, é evidente, por masoquismo, pelo prazer de sofrer ou então por maldade. Achamos, até mesmo, e com sinceridade, que estamos agindo certo.
O padre Antônio Vieira, em um magistral sermão, colocou bem essa atitude, ao constatar: "Quem estima vidros, cuidando que são diamantes, diamantes estima e não vidros; quem ama defeitos, cuidando que são perfeições, perfeições ama e não defeitos. Cuidai que amais diamantes de firmeza, e amais vidros de fragilidade; cuidais que amais perfeições angélicas, e amais imperfeições humanas. Logo, os homens não amam o que cuidam que amam. Donde também se segue que amam o que verdadeiramente não há; porque amam as coisas não como são, senão como as imaginam; e o que se imagina, e não é, não há no mundo". Pela conclusão de Vieira, portanto, tais indivíduos (nós), que estimam vidros cuidando que sejam diamantes, tentam "agarrar a sombra e perdem de vista a substância".
Há dinheiro que pague a satisfação estética advinda de pessoas, paisagens e atitudes bonitas? Há riqueza que compre a emoção despertada por um poema bem composto, por uma melodia harmoniosa, por uma escultura perfeita, por uma tela de onde explode a vida em cores, luzes e sombras? Há recurso material capaz de compensar a sabedoria que existe na renovação da natureza? Há maneira de pagar a sensação de plenitude que nos dão a sucessão de gerações, a inocência de uma criança, os ideais dos moços, o desenvolvimento dos filhos, a chegada dos netos e o resultado que vemos da educação que demos àqueles que nos competia dar?
Essas são as substâncias da vida. Fama, fortuna e poder são sombras. A criação, a solidariedade, o amor, a compreensão e o perdão são diamantes. A posição social, o dinheiro, a ostentação são vidros. Todos amamos, em certa medida, estas "sombras". Todos, em algum momento, abrimos mão da substância. Estimamos vidros cuidando que sejam diamantes, mas poucos têm a coragem de admitir o equívoco. A vaidade impede a admissão. A teimosia não deixa que possamos dar a meia volta para retomar, ou encontrar, o caminho melhor.
Há um texto de Ronald de Carvalho a esse respeito que considero basilar. Diz: "Nós complicamos o problema da existência com uma nuvem de palavras douradas e outra nuvem de lembranças teimosas e mortificadoras. Palavras inúteis e lembranças insopitáveis, são como as trepadeiras que se enrolam, preguiçosamente, ao longo dos troncos robustos. Dão, por vezes, alguma flor menos mofina, mas só o tronco sabe quanto lhe custou aquele formoso luxo. Todas as nossas idéias apriorísticas sobre a natureza do bem e do mal, todas as nossas construções metafísicas são como as flores daquela trepadeira. Quanto mais coloridas, tanto mais dolorosas... Devemos fazer da vida um motivo de alegria e de saúde, sem, contudo, nos entregarmos aos impulsos da sensação pura, ao gozo brutal do momento que passa".
O mundo não é mau, como ouvimos e lemos amiúde, desde tenra infância. A existência não é ruim, um vale de dores e de lágrimas, como asseguram furibundos e fanáticos pregadores ascéticos. A felicidade não é uma ocorrência rara e virtualmente ilusória. Nós é que complicamos a vida. Nossa vaidade, nossa arrogância e nossa prepotência contra o próximo é que, como a mola, voltam para nós com a mesma força com que as destinamos aos outros e nos oprimem, machucam e humilham. Corremos o tempo todo atrás de sombras e não percebemos a substância parada bem diante dos nossos narizes...

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