Monday, March 20, 2006

O remédio é confiar

O Censo Penitenciário de 1994 informa, entre outras coisas, que o Brasil tinha nesse ano a quarta maior população carcerária do mundo. Perdia, nesse aspecto, somente para três países que são mais populosos do que o nosso: China, Estados Unidos e Rússia. Ainda assim, a violência aumenta, em todas as classes e comunidades e, em alguns momentos, beira a níveis intoleráveis, como se verificou no Rio, onde foi necessário se recorrer às Forças Armadas para tornar a vida na cidade um pouquinho mais segura. Segurança total? Não passa de utopia! Conclui-se, por conseqüência, que a solução do problema não está, simplesmente, na repressão. Esta pode ser até um paliativo. Mas não resolve nada. O caminho para mudar para melhor essa situação dramática é, basicamente, um só: educação.
O economista e ex-reitor da Universidade de Brasília, Cristovam Buarque, governador do Distrito Federal pelo PT, disse, em entrevista publicada no caderno “Idéias”, do “Jornal do Brasil”, em 19 de março de 1994: “Cada país é o mito que sua população forma dele, muitas vezes sem nem ao menos perceber. O Brasil é um conjunto de mitos: o bandeirante, o sincretismo, o país do futuro. O colapso da modernidade está levando ao colapso dos mitos brasileiros. O bandeirante é condenado por jogar mercúrio nos rios, o jeitinho virou corrupção, o sincretismo preconceito, o país do futuro virou a tragédia social”.
O que fazer? Entregar-se ao desalento e deixar que as coisas se arranjem por si só? Mas essa inércia seria catastrófica! É preciso reconstruir a nacionalidade a partir da própria base. E se não tivermos uma, esta tem que ser construída, não importa como. E isso se faz, apenas, através da educação, mesmo que deficiente. Uma das constatações do Censo Penitenciário, bastante reveladora, é a de que 87% de todos os presos do País – em número de 129.169 – ou são analfabetos, ou não têm o primeiro grau completo. São, portanto, pessoas com pouquíssimos, irrisórios recursos para enfrentar a luta pela sobrevivência nas grandes cidades, pelo menos dentro das regras vigentes. Diante dos resultados medíocres que conseguem, e expostos a contínuas tentações, parte destes indivíduos descamba para a marginalidade. Daí para a delinqüência é um simples passo.
Por exemplo, 51% da população carcerária está ali por haver atentado contra o patrimônio: 33% por roubo e 18% por furtos. Albert Einstein, em seu livro “Como vejo o mundo”, nos dá a fórmula correta para conter a violência, na impossibilidade de eliminá-la. “A coexistência pacífica dos homens baseia-se, em primeiro lugar, na confiança mútua; e, só depois sobre instituições como a Justiça”, constata. Hoje, virtualmente, ninguém confia em ninguém. E sobre esta base apodrecida não se constrói um edifício social sólido, que consiga se manter. E as coisas ficam ainda mais complicadas quando se alia à desconfiança, o egoísmo, o preconceito, a prepotência e tantos outros vícios incorporados aos nossos costumes.
Cristovam Buarque defende a “refundação dos mitos” nacionais. Ou seja, o resgate da utopia. E explica: “Não se conseguirá inventar em anos novos mitos que substituam os que têm séculos. É preciso recriar os mesmos: o jeitinho virar criatividade, o futuro social substituir o futuro técnico”. Mário da Silva Brito escreveu, em certa ocasião, que “as nações também deviam fazer psicanálise”. O Brasil, há tempos, vem sendo analisado, colocando para fora as compulsões, traumas e medos que o atormentam, numa autocrítica que raia ao autolinchamento. Está na hora de reconstruir a personalidade e iniciar a construção do futuro sobre bases sólidas, e se possível, indestrutíveis. Aposta no positivo.
A maioria das pessoas, afetadas pelo que vê, lê e ouve nos meios de comunicação no seu dia-a-dia, aposta na infelicidade, investe no pessimismo, parece deleitar-se com a desgraça. Há os que ostentam suas chagas de forma explícita, como se fossem galardões. Nas conversas informais, arranjam um jeito para desfiar suas desventuras – às vezes concretas, como doenças, desemprego, miséria e crises conjugais – como se a soma delas lhes conferisse uma certa notoriedade.
Para se ter uma vida sadia, todavia, é preciso lutar contra esse negativismo. Não se defende, evidentemente, a alienação de ninguém. O mal, nas suas diversas formas, existe, é uma realidade inegável. Seu antídoto evidente, porém, é seu oposto. Ou seja, o bem, as idéias positivas, a valorização das pequenas coisas agradáveis que nos ocorrem que, somadas, acabam por se tornar grandes.
O poeta Mário Quintana, nos versos “Da Felicidade”, retrata muito bem esse comportamento distorcido, essa aposta que as pessoas invariavelmente fazem (até de forma inconsciente) na infelicidade. Escreve:

“Quantas vezes a gente, em busca da ventura
procede tal e qual o avozinho infeliz:
em vão, por toda parte, os óculos procura,
tendo-os na ponta do nariz!”.

Trata-se da mesma coisa expressada na letra de uma canção de muito sucesso na década de 60, de Ataulfo Alves, que constata: “Eu era feliz e não sabia”.
Quanta gente há que não valoriza esses raros, e por isso preciosos, momentos de alegria!Tais indivíduos preferem “deleitar-se” com suas desgraças, reais ou imaginárias (na maioria das vezes). São dignos de pena, mas nada se pode fazer por eles. A cura desse pessimismo crônico está nas mãos dos próprios pessimistas. O mesmo Quintana, citado acima, tem um poema, “O Milagre”, em que descreve como seria um momento encantado, desses que passam, invariavelmente, despercebidos de quem os vive. Expressa o poeta:

“Dias maravilhosos em que os jornais vê cheios de
poesia...
e do lábio do amigo
brotam palavras de eterno encanto...

Dias mágicos...
em que os burgueses espiam,
através das vidraças dos escritórios,
a graça gratuita das nuvens...”

Os partidários da infelicidade, seus cultores fanáticos, quando criticados, defendem-se, murmurando, mal-humorados, entredentes: “Você por acaso é alienado? Como ser feliz diante da miséria ostensiva, de crianças abandonadas nas ruas e sendo mortas como bichos, da violência tomando conta das cidades, ameaçando nossos lares, da corrupção, do cinismo, da prepotência dos políticos e das injustiças?”.
Todavia, o que há de novo em tudo isso? Para resolver, ou contribuir, ou participar da solução desses problemas há alguma regra que nos obrigue a descrer nos semelhantes, a cultuar o desencanto, a fazer a apologia da infelicidade? Ao adotarmos uma postura tão amarga, não estaríamos dando, não importa em que intensidade, nossa contribuição para que o mundo seja, de fato, um inferno na Terra, um lugar insuportável de se viver?
O negativismo (tanto quanto o ódio e o medo) é altamente contagioso. Daí o poeta Rainer Marie Rilke ter expressado, no seu “Livro das Horas”:

“Se eu tivesse nascido em qualquer parte
onde há dias mais leves e horas mais esbeltas,
teria inventado para ti uma grande festa,
e as minhas mãos não te segurariam assim,
como por vezes te seguram, medrosas e duras”.

(Capítulo do livro “Por uma nova utopia”, Pedro J. Bondaczuk, páginas 51 a 56, 1ª edição – 5 mil exemplares – fevereiro de 1998 – Editora M – São Paulo).

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