Parceria
post-mortem
A
trilogia “Millenium”, do jornalista sueco Stieg Larsson, é um
dos maiores sucessos editoriais da primeira década do século XXI.
Vendeu uma quantidade imensa de livros mundo afora, e continua
vendendo e esgotando edições após edições, sem que se saiba onde
esse sucesso todo irá parar. Para que vocês tenham uma ideia, na
Suécia, terra natal do autor, uma em cada quatro pessoas leu pelo
menos um dos três livros da série. E o sucesso repetiu-se em toda a
Europa, nos Estados Unidos e também no Brasil.
O
irônico de tudo isso é que Stieg Larsson não pôde testemunhar seu
imenso êxito literário. Aliás, temia que os livros, se publicados,
viessem a encalhar nas livrarias e se constituir em contundente
fracasso. Morreu em sua casa, precocemente, vítima de um fulminante
ataque cardíaco, aos 50 anos de idade, dias depois de haver entregue
à editora os originais dos três romances da série. Ou seja, o
lançamento foi feito postumamente. Quem se deu mal com sua morte
súbita, porém, foi sua esposa e companheira de aventuras e ideais,
a arquiteta Eva Gabrielsson. Ocorre que Larsson não deixou
testamento. Pudera, sequer desconfiava que iria morrer na idade que
tinha! Ninguém consegue prever um evento desses!
De
acordo com a legislação sueca, em casos como este, em que não
existe testamento e o casal não tenha filhos, os herdeiros legais
dos bens do falecido, e notadamente dos direitos autorais dos seus
livros caso seja escritor, são os pais e irmãos. Dessa forma... Eva
ficou a ver navios. Claro que ela vem fazendo de tudo para reverter,
na justiça, essa situação.
Ela
lançou, em 2011, simultaneamente, na França, Suécia e Noruega, um
livro de memórias, que tende a gerar ainda mais polêmica em torno
da questão, intitulado “Millenium, Stieg and me”. Ele foi
escrito em colaboração com a jornalista francesa Marie-Françoise
Colombari. O conteúdo, em boa parte da obra, é o que se espera
desse gênero. Ou seja, a narrativa da infância de Eva, como ela
conheceu Larsson (com quem esteve casada por 32 anos), a vida em
comum do casal e seus esforços para manter a revista “Expo”,
fundada pelo marido em 1995, quando a extrema-direita ganhava força
na Suécia.
Até
aí, tudo bem. Não há nada de excepcional que um livro de memórias
não contenha. O que chamou a atenção da opinião pública e,
principalmente, dos meios editoriais, todavia, foi a afirmação de
Gabrielsson de que estava em condições de concluir o quarto volume
da série “Millenium” (os três bem-sucedidos, recorde-se, são
“Os homens que não amavam as mulheres”, “A menina que brincava
com fogo” e “A rainha do castelo de ar”) e que está decidida a
fazê-lo. Ela informa que esse novo livro está praticamente escrito,
e pelo próprio marido falecido, que teria deixado 200 de suas
páginas redigidas em um computador pessoal antes da morte prematura.
Para
se antecipar a, ou prevenir comentários maldosos, Eva assegura que
não está de olho no dinheiro, embora tenha consciência que esse
quarto romance da série tende a vender tanto, ou até mais (por
causa do fator “curiosidade”) do que os outros três. Assegura
que sua intenção é fazer a vontade de Stieg e com isso reverenciar
sua memória. Acho justa esta luta de Gabrielsson. Injusto é ela não
herdar os direitos autorais do marido, apenas pelo fato deste não
haver redigido um testamento.
Para
quem não leu nenhum dos três livros da trilogia “Millenium”,
informo que os principais personagens dessas histórias de suspense,
que prendem o leitor da primeira à última página, são o
jornalista investigativo Mikael Blonkvist e a hacker punk Lisbeth
Salander. O primeiro desbarata esquemas fraudulentos e soluciona
crimes escabrosos. Já a segunda, que parece ser uma garota frágil,
é, na verdade, mulher determinada, ardilosa e perita tanto em
ciberpirataria quanto nas táticas do pugilismo.
Outros
personagens relevantes são Annika Giannini, irmã de Mikael,
advogada cuja especialidade é a defesa de mulheres vítimas da
violência e o inspetor Jan Bublanski, que ignora a promotoria e tem
métodos bastante pessoais e nada ortodoxos de fazer investigações.
Claro que sequer resumirei o enredo de nenhum dos três livros, para
não estragar seu prazer de acompanhar e tentar desvendar por si só
as respectivas tramas, meu exigente leitor.
Mas,
voltando à Eva, ela explica porque é capaz de concluir o quarto
volume da série “Millenium” que o marido teria deixado bem
encaminhado: “Stieg e eu frequentemente escrevíamos juntos”. E
não há porque duvidar disso. Só não concordo com a afirmação da
viúva de que o dinheiro não tem nada a ver com toda essa história.
Se fosse verdade, ela aceitaria a oferta da família do marido morto
que, numa tentativa de conciliação, ofereceu-lhe 2,1 milhões de
euros, além de um lugar no conselho executivo da empresa que
administra os direitos de Stieg. Como se vê, foi uma oferta nem um
pouco desprezível. Para ela, porém, é ou tudo ou nada.
Pelo
visto, esta história dos direitos autorais de Stieg Larsson ainda
está muitíssimo distante de acabar. Provavelmente, teremos
capítulos e mais capítulos, com um suspense igual ou até maior do
que o dos livros da trilogia (que, provavelmente, se transformará
em quadrilogia, posto que o quarto romance tenda a ser considerado
apócrifo pelos leitores e pela crítica). Da minha parte, caso
morresse antes de concluir minha obra (toc-toc-toc na madeira), bem
que gostaria de contar com esse tipo de parceria post mortem. Ou
seja, de alguém que tenha partilhado não apenas meu leito conjugal,
mas minhas ideias, meus projetos e meu coração.
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