Monday, May 21, 2018

CRÔNICA DO DIA - Na própria carne


Na própria carne


Pedro J. Bondaczuk


O sofrimento – físico, mental, moral, psicológico, afetivo ou seja lá de qual natureza for – é o que há de pior para qualquer ser vivo e, lógica e especificamente, para o homem. Infelizmente, no entanto, é o que mais existe mundo afora. Todos, rigorosamente todos, passamos, em algum momento de nossas vidas, por essas dolorosas experiências. O que varia é a constância, e não somente ela, mas a causa, a duração, a natureza e a intensidade dessa coisa ruim que, não raro, após cessar, produz traumas muitas vezes incuráveis. Ou seja, mais sofrimentos, posto que de natureza diversa.

Não há uma única pessoa considerada “normal” (embora o conceito de normalidade seja muito elástico, vago e indefinido) que não busque fugir de todas as formas dos sofrimentos. Certo? Creio que isso chega a ser até redundante, de tão óbvio que é.

Aquele chato, que põe reparo em tudo e dá pitaco em qualquer assunto só para contrariar e contradizer, pode afirmar (e certamente afirmará): “Há os que, não somente não fogem do sofrimento, como até se deliciam com ele e o procuram”. É verdade. A referência, aqui, claro, é aos masoquistas. Estes, todavia, não são normais (no senso comum de normalidade). Padecem de um desvio, de uma tara, de ostensiva anormalidade, que contraria, até, um dos instintos básicos dos seres vivos: o de autopreservação.

O normal é que as pessoas evitem o sofrimento. E quando não é possível evitar, busquem diminuir e curar logo as causas para eliminá-lo. A única função da medicina, por exemplo, é a de curar doenças e, dessa forma, acabar com os sofrimentos orgânicos.

A indústria farmacêutica desenvolveu uma série de analgésicos, que muitas vezes, se usados inadequadamente, atacam os sintomas sem atacar as causas, especificamente para livrar as pessoas da dor. Ou seja, do sofrimento. Mascaram, dessa forma, as doenças (mas não quero e nem vou generalizar).

Para intervenções mais radicais, as cirúrgicas, foram desenvolvidos os anestésicos, tremendo avanço para cirurgias mais humanas e seguras, para que não sejam tão dolorosas (e perigosas pois podem levar os pacientes até ao estado de choque) como eram até antes da sua invenção.

Em resumo, nosso empenho cotidiano, individual ou coletivo, é no sentido de evitar o sofrimento, de acabar com ele depois de instalado ou de, quando isso não for possível, diminuí-lo e torná-lo suportável. As pessoas mais sensíveis sofrem não apenas com seus problemas individuais, mas com os coletivos também. E os idealistas veem o mundo como um lugar de sofrimento, um “vale de lágrimas”, e por isso se empenham na utopia de construir realidades ideais, nas quais ninguém sofra, por nenhum motivo. Claro que é impossível. Daí o termo “utopia” para suas projeções.

Relendo, porém, por estes dias, um livro de Anatole France (pseudônimo do escritor francês Anatole François Thibault, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1921, pelo conjunto de sua obra), se não me engano o romance “O manequim de vime”, li, surpreso, a seguinte declaração que anotei: “O sofrimento! Que divino desconhecido! Devemos-lhe tudo o que é bom em nós, tudo o que dá valor à vida; devemos-lhe a compaixão, devemos-lhe a coragem, devemos-lhe todas as virtudes. A terra não passa de um grão de areia no deserto infinito dos mundos. Mas se o sofrimento se limita à terra, ela é maior que o resto do universo”.

Fiquei pasmo! Nunca antes havia lido algo que me soasse a uma apologia do sofrimento, como esse trecho me parece ser. Quando se lê coisas desse tipo, notadamente em obras de ficção, é preciso muito cuidado. É necessário, antes de tudo, contextualizar a declaração.

Muitas vezes um escritor coloca na boca de um personagem conceitos diametralmente opostos aos seus. Portanto, fico sem saber se, no caso, esse era o verdadeiro pensamento de Anatole France ou não. Provavelmente não era. E justo ele, que era um sujeito realista, com ideais de esquerda, cético e não dado a misticismos (os místicos é que pregam a purificação da alma mediante penitências e autoflagelações, ou seja, sofrimento físico)!

Sem nenhuma certeza, fico com a desconfiança de que essa era a opinião do “personagem” e não do seu inventor. Não posso garantir nem uma coisa e nem outra. Eu, se fosse o autor da afirmação, de alguma forma, esclareceria, na sequência, que não penso dessa forma. Mas... cada escritor tem sua maneira de proceder.

É verdade que o sofrimento enseja o surgimento de preciosas virtudes, como a compaixão e a coragem, como ressalta o personagem de Anatole France. . Mas, da mesma forma que analisei os que “gostam” de sofrer, ou seja os masoquistas, devo citar o outro extremo, o dos que entram em êxtase, em delírio, em estado de supremo gozo quando infligem sofrimentos aos outros, no caso, os sádicos.

Estes têm compaixão? Ora, ora, ora. Para quem tem essa tara, quanto mais os outros sofrem, mais se deliciam. E sequer importa para eles se esse sofrimento é causado por eles, ou por outros ou por qualquer causa alheia à ação humana.

Quanto à coragem... Nem todos (e nem sempre) encaram o sofrimento de forma corajosa e confiante. Há os que são mais sensíveis. Há os que se acovardam e findam por sofrer com a simples ideia da possibilidade de passarem por um ou por vários sofrimentos. Conheço inúmeras pessoas assim e, provavelmente, o leitor também conhece.

Anatole France, portanto, (ou seu personagem, como convencionei que iria considerar), declarou uma tremenda bobagem, que serve mais para justificação da tara de um renitente masoquista, do que para expressar a ideia de uma pessoa normal (reitero, no senso comum de normalidade). Da minha parte, detesto sofrimentos (não importa de que tipo e intensidade) e, sempre que está ao meu alcance, procuro minorar, e jamais infligi-lo aos outros. E você, paciente leitor?


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