Saturday, October 06, 2012

Marcado pelo preconceito

Pedro J. Bondaczuk

O catarinense João Cruz e Sousa foi um dos mais refinados, criativos e completos poetas brasileiros de todos os tempos. Entre outras coisas, é reconhecido, hoje, consensualmente, como o marco do simbolismo no Brasil. Seus temas são profundos e reflexivos, não raro de características até místicas e de inigualável perfeição formal. Nascesse em outros tempos, que não no que nasceu, seria muito mais valorizado do que foi e, convenhamos, do que é até hoje. Basta analisar sua obra, humana, profunda, sensível e musical para se chegar a essa óbvia conclusão.

O que, pois, impediu esse reconhecimento (pelo menos o em vida) a que sempre fez jus? Afirmo categoricamente, sem receio de equívoco: o preconceito. Cruz e Sousa era negro! E por causa desse detalhe, que nunca deveria contar para nada, os críticos literários e os estudiosos de literatura sempre encontraram “senões” (por razões exclusivamente subjetivas, seguindo a maré vigente) onde não havia e nunca houve motivos para reparos. Tentaram, várias vezes, contestar essa minha constatação e nunca conseguiram. Afinal, o preconceituoso jamais admite essa odiosa condição. Nega-a enfaticamente. Reitero e sustento: Cruz e Sousa nunca recebeu o devido reconhecimento pela conduta exemplar e, principalmente, pela perfeição da sua obra por um e único motivo: por ser negro. E isso num país em que praticamente a metade da população é negra ou mulata, mas que deu raríssimas, escassíssimas, quase nulas oportunidades de projeção a escritores não brancos!

Nascido escravo, não tardou para que seus pais, o mestre-pedreiro Guilherme da Cruz e Carolina Eva da Conceição, fossem alforriados pelo seu então senhor, o marechal Guilherme Xavier de Sousa. Encantado com a esperteza e o talento precoce do menino, o militar decidiu se encarregar de sua educação, que foi das mais refinadas para a época. O jovem, mais tarde, por gratidão, assumiu o sobrenome da família que o acolheu com tamanha generosidade. Não tardou para que o casal Sousa, que não tinha filhos, praticamente adotasse o menino, cuidando da sua educação, para que fosse a mais completa que o dinheiro pudesse pagar. Em vez de ser elogiado por essa atitude humana e de muito amor, porém, passou a ser mal visto na região. Sem comentários.

João Cruz e Sousa aprendeu francês, latim e grego, entre outras tantas coisas. Além disso, teve o privilégio de ser aluno do requisitado professor alemão Fritz Muller, com quem aprendeu Matemática e Ciências Naturais. Seu preparo intelectual, irrepreensível para a época, credenciava-o a seguir, com brilhantismo e sucesso, qualquer carreira que viesse a escolher. Credenciava-o. Mas... havia um obstáculo, então intransponível (e ainda hoje, difícil de se transpor): a cor da sua pele. Era negro, em um país em que persistia, ainda, a vergonhosa escravidão, tida como coisa “normal” e corriqueira na cabeça da população. Exagero meu? Não!

Por exemplo, em 1883 Cruz e Sousa credenciou-se ao cargo de promotor público da cidade de Laguna. Passou brilhantemente em todos os testes a que foi submetido. Satisfez às menores exigências que lhe foram feitas. Não havia candidato algum melhor preparado para o cargo. Era barbada! Mas... foi recusado. Motivo alegado para a recusa? Por ser negro! Isso mesmo, não lhe deram a oportunidade de sua vida, única e exclusivamente por causa da cor da pele!!! Como algumas pessoas, e as respectivas sociedades que integram, são ignorantes, preconceituosas e más! Agem sem a mínima lógica e julgam-se sábias e justas. Imaginem se não fossem (como não são)!

Esse homem talentoso e íntegro, que tinha tudo para ser um dos grandes vencedores do seu tempo, e na carreira que melhor lhe aprouvesse, comeu o pão que o diabo amassou. Teve que se contentar com empreguinhos subalternos, mal remunerados por si sós, recebendo remuneração ainda menor do que a dos brancos que exerciam a mesma função. E olhem que teve sorte de ao menos arrumar trabalho. Muitos negros instruídos não conseguiram, na época. Cruz e Sousa foi, por muito tempo, arquivista da Estrada de Ferro Central do Brasil. E apesar de exercer função muitíssimo aquém da sua capacidade, fê-lo com garra, competência e responsabilidade.

Casou-se com Gavita Gonçalves, também negra, pois na ocasião, casamentos interraciais eram inconcebíveis. O casal teve quatro filhos e todos morreram vítimas de tuberculose. A mulher não suportou tantas desgraças e ficou louca. E tudo isso aconteceu por um motivo estúpido, imbecil, ilógico e cruel: pelo casal ser negro.

Seus livros, quando lidos e analisados por críticos que não soubessem da cor da sua pele, eram classificados como obras-primas. Contudo, os elogios (merecidíssimos, como qualquer pessoa razoavelmente instruída pode constatar) logo se transformavam em ácidos ataques e infinitas restrições tão logo os que os haviam louvado antes descobriam que o autor era negro. Ainda bem que hoje os catarinenses, pelo menos, e em especial, os moradores de Florianópolis, sua cidade natal (quando Cruz e Sousa nasceu ela era chamada de Nossa Senhora do Desterro), fizeram o devido resgate da memória desse gênio das letras, por ocasião do centenário de sua morte (ocorrida em 19 de março de 1898) e lhe prestam a devida reverência.

É de se supor que a poesia de um poeta tão injustiçado e sofrido fosse sombria, magoada, triste e cheia de queixas. No caso de Cruz e Sousa, isso não aconteceu. É otimista, reflexiva, profunda e causa imediata empatia à mera primeira leitura. Seus sonetos são musicais. Têm tamanha harmonia que, qualquer um deles, pode ser facilmente musicado e transformar-se em maviosa canção, dessas de “grudar” no ouvido e tocar a alma. Partilho com vocês esse poema sobre a primavera, dos vários que o poeta (que apenas muitos anos após sua morte foi apelidado de “Dante Negro” e de “Cisne Negro”) compôs, e que dispensa qualquer comentário. Sua qualidade superior e sua magnificência destacam-se por si sós:

Primavera afora

“Escute, excelentíssima: -- Que aragens
Traz do arvoredo a fresca romaria;
Como este sol é rubro de alegria,
Que tons de luz nas límpidas paisagens.

Pois beba este ar e goze estas viagens
Das brancas aves, sinta esta harmonia
Da natureza e deste alegre dia
Que resplandece e ri-se nas ervagens.

Deixe lá fora estrangular-se o mundo...
Encare o céu e veja este fecundo
Chão que produz e que germina as flores.

Vamos, senhora, o braço à primavera,
E numa doce música sincera,
Cante a balada eterna dos amores...”

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