Monday, September 03, 2012

Borges poeta

Pedro J. Bondaczuk

A minha admiração por Jorge Luís Borges é irrestrita. Considero-o um dos gigantes da literatura mundial de todos os tempos. Afirmar que ele é criativo é redundante. O que mais admiro em seus textos é seu aguçado senso crítico, mas sem aquela agressividade tola e gratuita de quem critica tudo e todos, mesmo o que não seja criticável, com uma sanha destrutiva de assustar. Borges, todavia, não age assim. Suas críticas são construtivas e feitas com inteligência e humor. Aliás, afirmar que admiro esse escritor é pouco. O que lhe dedico é mais do que mera admiração, é reverência, é respeito intelectual, é amizade, mesmo que não o tivesse conhecido pessoalmente (antes tivesse esse privilégio!).

Há quem me ridicularize por esse entusiasmo por Borges, que classificam, entre outras coisas, de infantil. Não me ofendo com isso. Pelo contrário, encaro como elogio, já que os sentimentos das crianças são genuínos e ostensivos, sem máscaras, dissimulações ou hipocrisia. Ademais, essa é uma das minhas características. Como diria Cazuza: “sou mesmo exagerado”, principalmente quando gosto de alguém ou de alguma coisa. Isso é ruim? Pois desse “delito” sou7 réu confesso.

Quem me acompanha há algum tempo, certamente já leu inúmeros textos que redigi a propósito desse escritor, que tento tomar como paradigma, como parâmetro de criatividade e de qualidade literária ao qual tentar imitar. Escrevi tanto a seu respeito, que se reunir toda essa escrita ela, certamente, perfará um alentado livro de ensaios, claro depois de cuidadosa revisão e respectiva edição. Certamente escreverei muito mais.

Fazendo, todavia, uma releitura de meus textos sobre Borges, percebi que não fiz nenhum comentário sobre sua produção num gênero em que mais se destacou: a poesia. Creiam-me, foi por acaso que procedi dessa maneira. Não se tratou, pois, de omissão proposital, de não apreciar sua poética. Pelo contrário. Até porque, Borges foi excelente poeta, que nada ficou a dever, por exemplo, a um Pablo Neruda, a uma Gabriela Mistral, a um Octávio Paz ou Carlos Drummond de Andrade (os três primeiros que citei, por sinal, ganhadores do Nobel de Literatura). Não conquistou, é verdade, esse prestigioso prêmio. E daí? Tantos outros consagrados escritores também não o conquistaram, Pior para o Nobel, ora bolas!

Interessantes são suas observações sobre poesia. Pincei algumas, todas extraídas do seu livro “História da Eternidade”. São palavras esclarecedoras e, sobretudo, de quem sabe o que diz, ou seja, não com base em pomposas teorias, mas na experiência de quem faz (e faz com perfeição). Como essa observação, sutil e inteligente, por exemplo: “Suspeitei certa feita que a diferença radical entre a poesia e a prosa está na expectativa muito diferente de quem as lê: a primeira pressupõe uma intensidade que não se tolera na última”. E o poeta não está certo? Claro que está.

Outra de suas observações a propósito é esta: “A poesia é um hábito eterno que não precisa inspirar-se na realidade externa”. E precisa? Claro que não! Mais adiante, Borges explica melhor essa declaração: “A poesia é cabalística, entre tantas outras coisas. Mas é muitas outras coisas também, e sentimos não poder defini-la sem reduzi-la. Creio que é melhor não definir a poesia, já que é algo que sentimos imediatamente, como a proximidade do mar ou da planície, ou de uma pessoa que amamos. A poesia é algo tão íntimo que não pode ser definida”.

Por outro lado, fiquei surpreso (e até lisonjeado) ao ler uma declaração de Borges a propósito de algo que eu já havia expressado em meus textos, e muito antes de descobrir que ele pensava da mesma forma. A qual me refiro? A esta: “Um verso bom não pode ser lido em voz baixa – ou em silêncio. Se isso for possível, então o verso não vale a pena, pois um verso sempre exige sua pronúncia. O verso nos faz lembrar que, antes de arte escrita, foi uma arte oral; o verso nos lembra que inicialmente foi um canto”.

Isto é o que chamo de “identificação” (da minha parte, claro, já que Borges jamais soube sequer da minha existência). Pertinentes (e inteligentes), são suas definições de beleza. Como esta: “O fato estético é algo tão evidente, imediato e indefinido quanto o amor, o gosto da fruta, a água. Sentimos a poesia como sentimos a presença de uma mulher, uma montanha ou uma baía. Se ela é sentida de imediato, por que diluí-la em outras palavras, que certamente serão mais frágeis do que nossos sentimentos?”. Ou como esta outra observação: “A verdade é que a beleza está à nossa espreita. Se tivéssemos sensibilidade, poderíamos captar sua presença na poesia de todos os idiomas”.

Finalmente, peço licença ao leitor para transcrever mais esta citação de Jorge Luís Borges: “Ao escrever (poesia) tem-se que ser ingênuo, não muito inteligente. É sobretudo a emoção que importa. A prosa é mais difícil”. E ele não está certo? É da ingenuidade, é da pureza e intensidade de sentimentos, é da emoção sem autocensura e sem restrição que nascem os mais belos e perpétuos versos, feitos, reitero, não para se intelectualizar, mas para se sentir.

Bem, escrever sobre poetas, sem reproduzir pelo menos uma de suas produções, considero suprema heresia. E não cometerei essa indelicadeza justo com quem elegi para paradigma. Selecionei, pois, três poemas de Borges, sendo o primeiro este, extraído do livro “A Rosa Profunda”:

Sou

Sou o que sabe não ser menos vão
Que o vão observador que frente ao mudo
Vidro do espelho segue o mais agudo
Reflexo ou o corpo do irmão.
Sou, tácitos amigos, o que sabe
Que a única vingança ou o perdão
É o esquecimento. Um deus quis dar então
Ao ódio humano essa curiosa chave.
Sou o que, apesar de tão ilustres modos
De errar, não decifrou o labirinto
Singular e plural, árduo e distinto,
Do tempo, que é de um só e é de todos.
Sou o que é ninguém, o que não foi a espada
Na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada.

O poema seguinte, extraído do mesmo livro, tem um cunho até filosófico, caracterizado por indagações fundamentais que todos fizemos, fazemos ou faremos algum dia:

Do que Nada se Sabe

A lua ignora que é tranquila e clara
E não pode sequer saber que é lua;
A areia, que é a areia. Não há uma
Coisa que saiba que sua forma é rara.
As peças de marfim são tão alheias
Ao abstrato xadrez como essa mão
Que as rege. Talvez o destino humano
Breve alegria e longas odisseias,
Seja instrumento de Outro. Ignoramos;
Dar-lhe o nome de Deus não nos conforta.
Em vão também o medo, a angústia, a absorta
E truncada oração que iniciamos.
Que arco terá então lançado a seta
Que eu sou? Que cume pode ser a meta?

Finalmente, o terceiro poema de Borges que escolhi provavelmente não foi publicado em nenhum livro. Li-o em um jornal (se não me falha a memória, francês), embora, no meu entusiasmo, não tenha anotado a fonte. Mas... isso não importa. O poema expressa a visão do poeta sobre uma das tantas tragédias do século XX, esta especificamente para a população do seu país, a Argentina, e de sua antagonista, a Grã-Bretanha, que foi a controvertida e polêmica Guerra das Malvinas:

Juan Lopez e John Ward

O planeta havia sido dividido em diversos países
cada um provido de lealdade
de queridas memórias
de um passado sem dúvida heróico
de antigas ou recentes tradições
de direitos, de agravos,
de uma mitologia peculiar,
de próceres de bronze,
de aniversários, de demagogos e de símbolos.

Essa arbitrária divisão
era favorável às guerras.
López havia nascido na cidade junto ao rio imóvel;
Ward, nos arredores da cidade
por onde caminhou Father Brown.
Havia estudado castelhano
para ler o "Quixote".
O outro professava o amor de Conrad,
que lhe havia sido revelado em uma aula da Rua Viamonte.

Teriam sido amigos,
mas se viram uma só vez cara a cara,
em umas ilhas demasiado famosas,
e cada um dos dois foi Caim,
e cada um, Abel.
Enterraram-nos juntos.
A neve e a corrupção os conhecem.
O fato a que me refiro
aconteceu num tempo que não podemos entender.

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