Monday, August 06, 2007

O dia em que Hiroshima conheceu a bomba A




Pedro J. Bondaczuk


Hiroshima, sete horas da manhã do dia 6 de agosto de 1945. As pessoas iniciam as atividades rotineiras nessa cidade, a oitava do Japão em população, localizada na maior ilha do arquipélago, a de Honshu. Apesar da guerra, pouca coisa há que lembre o terrível conflito, que já se arrasta há quatro anos, com bombardeios quase diários às grandes povoações japonesas.
Os dois maiores centros urbanos do país, Tóquio-Yokohama e Osaka-Kobe, são submetidos a ataques convencionais possivelmente inéditos em toda a história. As super-fortalezas voadoras B-29 despejam, com incrível pontualidade, toneladas e mais toneladas de explosivos nessas duas áreas.
Mais de 150 quilômetros quadrados, densamente povoados, foram literalmente queimados. Dois milhões de prédios estão destruídos. Vistas do alto, essas áreas metropolitanas, outrora cheias de vida e de agitação, não passam de escombros. O cenário é desolador, lembrando uma paisagem lunar.
Mais de treze milhões de pessoas perderam os seus lares. Num único ataque na região, feito por mil aviões e que durou uma noite inteira, 74 mil pessoas morreram ou receberam ferimentos. Estranhamente, Hiroshima foi poupada desse destino.
Muitos dos seus moradores diziam, até cheios de uma tranqüilizadora certeza, que os norte-americanos esttavam propositalmente conservando intacta a cidade para quando a guerra acabasse. Os comentários que corriam eram que ela seria uma zona residencial por excelência no período de reconstrução que viria a seguir. Nem o mais pessimista dos cidadãos poderia, sequer de longe, imaginar o destino que estava reservado para Hiroshima apenas uma hora mais tarde.
O dia havia amanhecido com um brilhante sol de verão. Era segunda-feira e várias pessoas já haviam deixado suas casas, rumo ao trabalho. Tudo recendia a normalidade e calma. A guerra como que não existia para essa gente. A única referência ao conflito, nos últimos tempos, havia sido representada por estranhos panfletos, lançados aos milhares (depois se soube que foram quinhentos mil) dois dias antes.
Eles diziam somente: “Esta cidade será destruída, a menos que seu governo se renda”. Ninguém levou isso a sério. Muitos até riram dessa grosseira tentativa de guerra psicológica. Ainda se os aviões, que jogaram esses avisos, houvessem desovado uma bomba ou mais, daria para acreditar. Nada disso, porém, aconteceu. Nada, além dos panfletos, foi lançado sobre os habitantes locais.
As informações que corriam em Hiroshima, por essa época, davam conta de vitórias espetaculares das tropas imperiais em várias batalhas do Pacífico. A população estava certa que o conflito estava chegando ao fim. E se o Japão, vencesse ou não, a cidade teria, certamente, um destino muito melhor do que outras tantas povoações urbanas de grande concentração populacional. Esse era o pensamento geral dos habitantes locais. Não havia, pois, nada a temer...

Arma é fruto das pesquisas de dezenas de cientistas

Apesar dos Estados Unidos terem sido os primeiros a explodir uma bomba atômica, em 16 de julho de 1945, no deserto de Alamogordo, no Novo México, muita gente, procedente de vários países e épocas variadas, foi responsável para que se chegasse a ela. Como, por exemplo, Röentgen, que em 1885 descobriu a eletricidade negativa dos raios-x. Ou o casal Pierre e Marie Curie que, acidentalmente, acabou topando com um novo elemento químico, de comportamento um tanto estranho: o rádio.
Ou como Albert Einstein, com suas conclusões de que matéria e energia são a mesma coisa./ Ou ainda Rutheford e sua descrição de como age a radioatividade e a enunciação de “como é”, na verdade, um átomo.
Até mesmo um japonês (que ironia!) participou da descoberta do processo, da montagem do quebra-cabeças, que acabou conduzindo à construção da bomba. Foi o físico Shimizu, que com seu colega russo Kapika, trocou informações com o italiano Enrico Fermi, permitindo a este que realizasse a primeira reação controlada em cadeia no urânio.
Muita gente mais contribuiu para que o homem detivesse o segredo dessa arma, capaz de destruir, em segundos, o que a natureza levou milhões de anos para construir. Como o alemão Hahn, descobridor da fissão nuclear. Ou o dinamarquês Niels Böhr, que produziu a “água pesada”, capaz de estimular a radioatividade e assim acelerar a reação em cadeias no urânio natural sob o lento bombardeio de nêutrons. Ou, ainda, o norte-americano Lawrence, que separou os isótopos em propagação térmica.
Dificilmente outro projeto, de caráter civil, mereceu mais atenção dos pesquisadores, do que esse, de ordem militar, que visava à obtenção da superarma. Do artefato bélico decisivo em caso de conflito, para quem o detivesse.
Não tivessem sido lançadas as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki, há quarenta anos, e o cidadão comum de hoje não acreditaria até mesmo nas sua existência, ao terrível é o seu potencial de destruição. Como muitos ainda não crêem, por exemplo, ingenuamente, que o homem tenha pisado na Lua, atribuindo as imagens das odisséias do Projeto Apolo, da Nasa, a meras montagens. O leitor mesmo já deve ter ouvido, em diversas ocasiões, baboseiras desse tipo. Há, até, quem não acredite ainda na existência da bomba atômica.
O super-secreto Projeto Manhattan reuniu, em Los Álamos, no Novo México, as maiores cabeças pensantes que o mundo conhecia. Gente como o Prêmio Nobel Niels Böhr, como os irmãos Oppenheimer, como Arthur Compton e como Klaus Fuchs, entre tantos outros.
Esses foram os verdadeiros “pais” da mais arrasadora arma já construída pelo homem. Mas, antes mesmo que ela fosse obtida, esses cérebros brilhantes denotavam enorme preocupação com as implicações políticas e morais que ela traria.
Em fevereiro de 1944, Böhr escreveu ao presidente Franklin D. Roosevelt e Winston Churchill mensagens exprimindo seus temores: “Está sendo criada uma arma de potência destruidora sem precedentes. A menos que seja instituído um controle internacional sobre o uso de novos materiais ativos (urânio, plutônio, etc), qualquer vantagem temporária, por maior que seja, será, invariavelmente, superada pela ameaça permanente à sociedade humana”. Tanto Roosevelt, quanto Churchill, discordaram do cientista. Ambos estavam errados. E como...

Cidade vê de perto como é o inferno, ou pouco mais...

De repente, o “inferno” desencadeou-se sobre a pacata Hiroshima. Uma explosão ofuscante, com o brilho tão intenso quanto o de mil sóis, mas com um diâmetro restrito, de somente 110 metros, atingiu a cidade. Foi uma simples fração de segundo, bastante para causar a maior destruição jamais vista por qualquer olho humano. Um calor de 300 mil graus centígrados originou-se no ponto de impacto. No raio de um quilômetro, nada resistiu.
Pedras queimaram como se fossem de betume. Pontes de aço transformaram-se em líquido incandescente. Telhados sumiram, simplesmente, como que num hediondo passe de mágica. O rio que corta a cidade ferveu, elevando o vapor para o alto. Prédios inteiros de granito derreteram, como manteiga posta ao fogo.
Pessoas evaporaram, deixando, como único vestígio, suas silhuetas “impressas”, como negativos de raios-x, nas paredes e nas ruas. No espaço de tempo que alguém leva para piscar os olhos, seis quilômetros quadrados do centro de Hiroshima haviam simplesmente desaparecido.
Um cheiro adocicado e enjoativo impregnou o ar. O céu azul, no qual brilhava um sol de verão, adquiriu coloração amarelo-escura. Uma imensa nuvem de fumaça, em formato de cogumelo, elevou-se a uma altura de 15 quilômetros. Tão alto que condensou o vapor de água e poucos minutos depois fez desabar sobre a cidade uma estranha e cruel chuva preta.
Suas gotas eram pegajosas como piche e tinham o tamanho de calhaus, carregadas de poeira radioativa. À medida em que atingiam a pele, provocavam dolorosas queimaduras nas pessoas, que ficavam com manchas vermelhas.
A população foi colhida totalmente de surpresa, sem que ninguém pudesse fazer nada para escapar da repentina ocorrência. O impacto da explosão provocou um terrível vento, com a força de vários furacões conjugados, com uma velocidade de 800 quilômetros por hora. As poucas edificações que haviam permanecido de pé, acabaram por ruir. As pessoas que buscaram abrigo sob as árvores nos parques, foram atingidas por troncos e galhos, vindo a morrer esmagadas por eles.
Homens, mulheres e crianças vagavam aturdidos, sem rumo, como se fossem robôs, sem atinar com o que havia acontecido. O medo os havia paralisado, a ponto de nem dor estarem sentindo. Os feridos contavam-se aos milhares. Pareciam monstros imaginários de outros planetas, como os retratados pelos autores de ficção científica.
Todos haviam como que retornado à inocência do Éden, isto é, estavam nus. As vestes haviam sido queimadas, ou arrancadas pelo vento originado pela explosão. Nos corpos calcinados, era impossível de se distinguir homens e mulheres. Alguns tinham as “marcas” das orelhas e do nariz impressas na face. Somente isso. As feições em nada lembravam as humanas.
Algumas pessoas, numa quase instintiva solidariedade, a despeito de estarem também gravemente feridas, buscavam ajudar os mais atingidos. Mas assim que tocavam os corpos agonizantes, viam, horrorizados, pedaços de carne saírem em suas mãos. A pele fumegava, como brasa, ao contato da água.
Mães procuravam, aturdidas, por seus filhos e não os encontravam. O ar estava impregnado com o cheiro da morte, de carne queimada e os sons de gritos, de suspiros de agonia e de lamúrias formavam uma sinistra sinfonia. E pensar que todo esse horror fora perpetrado por homens contra homens...

“Meu Deus, o que fizemos!”

“Meu Deus, o que fizemos!”, foi a exclamação de horror e de asco do co-piloto da super-fortaleza voadora B-29, capitão Robert Lewis, ao ver elevar-se para os céus a gigantesca nuvem, em forma de cogumelo, após a explosão da “Litle Boy”, nome dado pela tripulação à bomba.
Mas se quem executou a tarefa de bombardeio a Hiroshima apresentou esse conflito de consciência, quem a ordenou, o presidente Harry Truman, parece não haver registrado nenhuma emoção maior. É o que se deduz de uma declaração que deu ao escritor John Tolland, autor do livro “The Rising Sun”. Perguntado se sentira alguma angústia antes de ordenar o lançamento da primeira bomba A sobre uma cidade densamente povoada, o político, simplesmente, respondeu: “Mas claro que não! Tomei a decisão assim!”, e estalou os dedos, para exemplificar que ordenou o ataque com toda a convicção.
Aliás, para Truman, a utilização da bomba atômica, desde o início, quando começaram as pesquisas para o seu desenvolvimento, era algo que estava em suas cogitações. Apesar de haver sido dito aos cientistas que desenvolviam a arma que esta não seria usada na guerra, e que serviria, apenas, como fator de dissuasão, para amedrontar o inimigo, para o presidente norte-americano ela não passava de um elemento a mais no arsenal do seu país. Algo como um novo tanque, uma nova metralhadora ou um novo tipo de granada. Enfim, um armamento como outro qualquer.
Doze dias antes do primeiro teste com a bomba, em 4 de julho de 1945, Truman havia ordenado, em Potsdam, onde se encontrava para firmar um tratado com Stalin e com Churchill, que a nova arma fosse entregue à Força Aérea. A partir daí, os destinos de Hiroshima e de Nagasaki estavam definitivamente selados. Ninguém entrega uma poderosa arma desse porte a unidades de combate se não for para que seja efetivamente usada.
No próprio dia da primeira explosão de testes, no Novo México, algumas unidades das bombas atômicas chegavam, cercadas do máximo sigilo, à Base de Tinian. Consta que por muito pouco elas não foram destruídas em um ataque feito pelos japoneses ao veículo que as transportava.
No dia 27 de julho, com a poderosa arma devidamente testada e com a Força Aérea já de posse de algumas unidades, o presidente norte-americano emitiu o chamado “Ultimato de Potsdam” aos japoneses. Ameaçava o Japão de “extrema destruição” se não houvesse uma “rendição incondicional”.
Contam, alguns historiadores, que o imperador Hirohito já estava estabelecendo negociações, através dos soviéticos, visando colocar um fim ao conflito. Mesmo assim, a bomba foi detonada.. Por que? Para mostrar aos adversários do futuro (já então existia um clima de antagonismo entre os ainda aliados, Estados Unidos e União Soviética) o seu poderio? Por uma questão de vaidade, visando demonstrar que a tecnologia norte-americana era melhor, capaz de desenvolver a arma definitiva?
Será que Truman tinha consciência exata sobre até que ponto ia o poder de destruição desse artefato? O presidente norte-americano foi informado com exatidão, sem a omissão de nenhum detalhe, sobre o tamanho da tragédia de Hiroshima? São perguntas cujas respostas, provavelmente, o mundo jamais irá conhecer.
E com a mesma facilidade com que Harry Truman tomou a decisão de bombardear a cidade japonesa, em 6 de agosto de 1945, isto é, num estalar de dedos, Mikhail Gorbachev, ou Ronald Reagan, poderão tomar, também, em algum momento de crise e de extrema tensão, transformando o mundo em uma gigantesca Hiroshima.

Mundo está perto de repetir a tragédia em escala maior

Hoje há, espalhadas por todo o mundo, milhares de pessoas que defendem essa hediondez praticada contra Hiroshima. Um grupo de Concord, no Estado de New Hampshire, nos Estados Unidos, publicou, inclusive, anúncio de página inteira, dia destes, destacando os “aspectos humanitários” do uso da bomba atômica.
Há muito humanitarismo em matar cem mil pessoas dessa forma horrível (civis em sua totalidade), conforme ocorreu apenas com a explosão da “Litle Boy”? Cem mil outras morreram em meio a sofrimentos indescritíveis e milhares padecem até hoje de moléstias incuráveis, de caráter hereditário, causadas pela radioatividade.
Não é muito difícil de se justificar as grandes chacinas perpetradas numa guerra e especialmente de se fazer a defesa dos vencedores de uma guerra. Existem inconseqüentes em profusão, para os quais os meios sempre justificam os fins. Os defensores da bomba A, em 1945, argumentavam que a sua simples existência faria com que a humanidade jamais pensasse novamente em pegar em armas para lutar.
Hoje, o que vemos, é um mundo marcado por ferozes conflagrações, abrangendo todos os continentes. Mais de 40 conflitos podem ser mencionados, quase que de memória, por freqüentarem, diariamente, as manchetes internacionais de jornais, revistas e noticiários de rádio e de televisão.
Nos dias que correm, mais do que nunca, toda a humanidade se encontra na iminência, bastante real, de passar pela experiência vivida pelos habitantes de Hiroshima. Mas em grau muitíssimo maior do que o drama dos moradores da cidade-mártir japonesa. Afinal, a bomba lançada sobre aquela localidade não serve mais nem de estopim para as modernas e absurdamente destrutivas armas nucleares atuais.
Além da potência, existe ainda o fator quantidade. Apenas Estados Unidos e União Soviética dispõem, juntas, de mais de 50 mil ogivas atômicas, cada uma com potência destrutiva pelo menos mil vezes superior à do tosco artefato que arrasou Hiroshima.
Essa data de 6 de agosto, quando se completam 40 anos do instante de maior insânia já vivido pelo homem, em toda a tumultuosa e sangrenta história das civilizações, embora incômoda, não pode nunca ser esquecida. A humanidade tem a obrigação de unir-se ao povo daquela cidade, às 8h15, e guardar ao menos um minuto de silêncio. E fazer uma sincera oração, não importando o seu credo religioso, em memória das milhares de pessoas que viram o inferno bem de pertinho, sem que nada pudessem fazer para escapar de seu trágico destino.
Mais do que a lembrança do “holocausto nuclear” de 1945, o que as pessoas de bom-senso que ainda restam no Planeta deveriam fazer era pressionar as superpotências para que ponham fim na insensata, e absurdamente dispendiosa, corrida armamentista. Para que os melhores cérebros que o mundo já produziu parem de maquinar formas de destruição cada vez mais pavorosas e voltem suas capacidades para a solução das grandes questões que nos desafiam.
Que o US$ 1 trilhão que serão gastos em armas, apenas neste ano, sejam revertidos na promoção do ser humano, seja de onde ele for, do Afeganistão ou da França, do Gâmbia ou de Honduras, da Suécia ou do Moçambique. Só assim o mundo jamais conhecerá, ampliado a dimensões absurdas, o “inferno” que a população de Hiroshima conheceu tão de perto.

Relato de um sobrevivente

O Dr. Michihiko Hachiya sobreviveu ao holocausto de Hiroshima e escreveu um diário sobre a tragédia, traduzido para praticamente todas as línguas, que é um documento muito importante nos anais da literatura atômica, narrando os efeitos de uma arma nuclear sobre o homem.
Acompanhem o relato que ele fez da explosão, acontecida em sua cidade às 8h15 de 6 de agosto de 1945 (por efeito da ionização, os ponteiros de todos os relógios locais pararam nessa hora):
“Estávamos parados na rua, indecisos e com medo, até que uma casa do outro lado começou a balançar e depois acabou caindo, ruidosamente, quase aos nossos pés. Nossa casa começou também a balançar e caiu um minuto depois, levantando uma nuvem de poeira. Outras construções também desmoronaram. Surgiram incêndios por toda a parte e um vento forte começou a espalhar as chamas.
Finalmente compreendemos que não podíamos continuar parados ali na rua. Assim, decidimos ir para o hospital. Nossa casa desaparecera, estávamos feridos e precisávamos de tratamento. E além do mais, era meu dever estar ao lado da minha equipe. Este último era um pensamento irracional. Ferido como estava, como eu poderia ajudar em alguma coisa?
Começamos a andar, mas tive que parar depois de uns 20 ou 30 passos. Estava ofegante, o coração batia descompassado, as pernas cederam. Fui dominado por uma sede excessiva e pedi a Yaeko-san (esposa dele) que me arrumasse um pouco de água. Mas não havia água em parte alguma...
Eu ainda estava nu. Embora não sentisse a menor vergonha, fiquei perturbado ao constatar que o recato me abandonara...
Parei para descansar. Gradativamente, as coisas ao redor começaram a entrar em foco. Divisei as sombras enevoadas de pessoas, algumas das quais mais parecendo fantasmas ambulantes. Outras se moviam como se sentissem dores intensas, como espantalhos, os braços estendidos para longe do corpo, antebraços e mãos pendendo. Al atitude me deixou desconcertado, até que percebi que aquelas pessoas estavam queimadas e estavam com os braços esticados para evitar a dolorosa fricção das superfícies em carne viva. Apareceu uma mulher nua, carregando um bebê, também nu. Evitei olhar, pensando que talvez eles estivessem no banho no momento em que ocorreu a explosão. Mas logo depois, avistei um homem nu, assim como eu. Ocorreu-me então que alguma coisa estranha privara a todos das roupas. Uma velha estava deitada perto de mim, com uma expressão de sofrimento. Mas ela não fazia qualquer ruído. Notei que havia algo comum a todos nós: o silêncio absoluto...
As ruas estavam desertas, exceto pelos mortos. Alguns pareciam ter sido paralisados pela morte no exato momento em que voavam. Outros estavam esmagados no chão, como se algum gigante os tivesse arremessado de grande altura.
Hiroshima não era mais uma cidade, mas sim uma planície arrasada pelo fogo. Para Leste e Oeste estava tudo arrasado. As montanhas distantes pareciam mais próximas do que eu podia lembrar-me. Como Hiroshima era pequena, agora que suas casas já não mais existiam!...
Entre o Hospital da Cruz Vermelha e o centro da cidade não vi coisa alguma que não estivesse reduzida a cinzas. Os bondes estavam de pé e lá dentro havia dezenas de corpos carbonizados e irreconhecíveis. Vi caixas d’água cheias de cadáveres até as bordas. Pareciam ter sido escaldados vivos. Num tanque, vi um homem horrivelmente queimado, agachado ao lado de um cadáver, bebendo sequiosamente a água misturada com sangue. Em outro tanque, havia tantos mortos que não dava espaço para que nenhum corpo ficasse caído. Deviam ter morrido sentados...
Que coisa fraca e frágil é o homem diante das forças de destruição! Depois da “pika” (a explosão inicial) toda a população fora reduzida a um denominador comum de fraqueza física e mental. Os que ainda podiam ficar de pé, caminhavam silenciosamente na direção dos subúrbios e das montanhas distantes, sem qualquer ânimo, sem aa menor capacidade de iniciativa. Quando se lhes perguntava de onde tinham vindo, apontavam para a cidade e diziam: de lá.
E quando se perguntava para onde iam, apontavam a direção oposta e diziam apenas: para lá. Estavam tão confusos e aturdidos que se comportavam como autômatos...
Um povo alquebrado abandonara uma cidade destruída. Os meios e a direção não tinham a menor importância. Alguns haviam seguido os trilhos do trem, outros, talvez por instinto, haviam preferido trilhas antigas e os arrozais, enquanto terceiros afastavam-se pelos leitos secos de riachos. Cada pessoa seguia por uma trilha, talvez sem motivo algum para isso, além de haver alguém ido na frente...
À medida que o dia foi chegando ao fim, pensei que era a mesma coisa que estarmos suspensos no tempo, pois não havia mais relógios nem calendários...”

(Matéria publicada na página 24, Especial, do Correio Popular, em 4 de agosto de 1985).


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